Em Marcos
8.22 a 26, temos o relato de um cego trazido a Jesus, um deficiente entre
muitos. Era visto sem ver, cego afundado na multidão das pessoas que veem, a
deficiência o fazia dependente de outros. Por graves que sejam, as coisas podem
ser diferentes – assim pensavam as pessoas que levaram o cego a Jesus.
Parentes? Amigos? Estranhos? Era rico? Era pobre? Inquietações multiplicam
perguntas. Jesus não se preocupa com a posição social ou econômica do enfermo. Antes
de todas as diferenças, o cego é alguém que precisa de ajuda.
Jesus
o toma pela mão e o guia para fora da cidade, longe do alvoroço, longe do
aplauso, longe do espetáculo. O cego sente o calor do afeto, ganha confiança na
mão que o guia. Quarteirões calmos tomam o lugar de ruas agitadas. Um homem
deficiente, guiado por mão eficiente. Antes da palavra, o contato físico, a mão
toca-lhe a cabeça. Umidade e mão lembram o gesto das origens, a mão criadora
que tirou o homem do pó da terra. Esqueçamos arrazoados científicos, o que Jesus
realiza excede saberes especializados.
O
episódio se destaca pela riqueza de detalhes. O cego vivia com suas próprias
cogitações, de repente está diante de objetos visíveis. Impressões suas? Os
objetos são como ele os vê? O cego nasce para o mundo das imagens, percebe
vultos, uns estão presos, plantados na terra, outros se movem. As diferenças
que o cego distinguia na ponta dos dedos são amparadas agora pelos olhos. Vejo
pessoas, parecem árvores andantes (Mc 8.24).
Todos
despertamos para um mundo estranho, sentidos unem-se na exploração do ambiente
em que vivemos. Vultos vistos pela criança se personalizam, sombras
transformam-se em pessoas. Primeiro se delineia o rosto e o regaço da mãe,
lugar de proteção, fonte de vida. Aparece o corpo do pai, de irmãos, de tios,
de tias... O mundo, o mesmo para todos, individualiza-se, divide-se, diversifica-se.
Vêm as palavras que evocam corpos distantes. Palavras unem, interpretam, sem
palavras viveríamos num mundo caótico, agressivo. Somos sempre partes de um
todo, árvores andantes em bosques humanos. Deus nos elege deficientes para
andarmos no caminho que leva à plenitude. Vemos parte de uma verdade que se
prolonga infinito a dentro.
A mão
de Cristo toca o cego pela segunda vez, imagens vagas ganham precisão. Haverá
sempre coisas que não percebemos. Certos corpos escondem outros, unidades
distantes perdem nitidez, não percebemos realidades debaixo do nosso nariz. Cegos
enxergam, pessoas dotadas de visão comportam-se como insensíveis, têm olhos
para ver e não veem. Não tenhamos pressa, o aprendizado é lento, um dia conheceremos como somos conhecidos. Preparemo-nos para o aprendizado que demanda séculos, séculos de séculos.
Aquele
que foi conduzido para fora da cidade pela mão de Cristo já pode retornar ao
domicílio por si mesmo. O mundo revelado na sola dos pés, na ponta dos dedos, no
odor, nos ruídos alarga-se até se perder no horizonte, olhos restaurados
levantam-se ao voo das aves que se deslocam no espaço vazio. Para reconhecer o
mundo que se desvela, o beneficiado deverá receber informações de pessoas que se
moviam como árvores. Sempre dependeremos uns dos outros, a dependência
fundamenta a solidariedade.
Cristo
recomenda que o restabelecido não saia de casa. Necessitará de tempo para
compreender o que lhe aconteceu. O que são os homens? No silêncio, poderá
refletir sobre o sentido da vida, sobre a alegria que lhe proporcionou a
aquisição de recursos inesperados. No silêncio saberá que nem tudo pode ser
visto, atrás do visível esconde-se o invisível. No círculo familiar aprenderá a
trocar experiências com pessoas que só conhecia pela voz, pelo tato,
desenvolverá forças para retribuir aos que lhe prestaram auxílio, a convivência
de que participará ativo adquirirá novo significado. Quando sair de casa,
estará aparelhado para explicar a outros o que o encontro com Jesus significa. Homens
que veem constroem o mundo, o dependente de antes aprenderá a construir com os
que constroem.