Onde está Deus nessa pandemia?


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11/05/2020 #Estudos #Editora Concórdia #Coronavírus

Por que Deus permite isso? Uma resposta para as desgraças a partir do livro de Jó

Onde está Deus nessa pandemia?

Num contexto em que as estatísticas indicavam que, nos Estados Unidos, mais de mil pessoas morriam diariamente por causa da pandemia que irrompeu em 2020, a conhecida emissora de TV CNN entrevistou o pastor Rick Warren. Em meio à conversa, apareceu também a pergunta de um telespectador: “Gostaria de saber onde está Deus durante uma pandemia? Por que Deus permite uma coisa tão prejudicial?”.

Rick Warren respondeu mais ou menos o seguinte: É uma boa pergunta. Na verdade, são duas perguntas. A resposta à primeira é que Deus está no coração do seu povo. Todas essas pessoas que você vê por aí, ajudando os outros... Isso é Deus no coração dessas pessoas. Eu não sei por que... Há algumas pessoas que se voltam para Deus, outras se afastam dele... Isso só revela o que está dentro de nós. As pessoas me perguntaram onde estava Deus quando o meu filho morreu [um filho de Rick Warren, que tinha problemas mentais, cometeu suicídio]. Resposta: No mesmo lugar em que ele estava quando o Filho dele morreu na cruz. Ele estava pranteando a falta de humanidade das pessoas no trato de umas com as outras. A Bíblia diz que Deus pranteia. Mas a gente também vê Deus na bondade das pessoas. ... A outra pergunta é: Por que Deus permite esse tipo de coisa? Quando as pessoas fazem essa pergunta, sempre que existe algo de errado no mundo, o que elas estão esperando é o céu na terra. Isso aqui não é o céu. É a Terra. No céu tudo ocorre com perfeição, não existe tristeza, nem dor, nem doença, nem estresse. Nada disso se aplica à vida aqui na Terra. Por isso, pedimos no Pai-Nosso: Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu...

Eu não sei por que

            A fala de Rick Warren é longa. Ele falou mais do que normalmente é possível numa entrevista na TV. (Alguém até já disse que não é possível falar a verdade na TV, porque raramente se tem tempo para aprofundar uma questão ou uma resposta.) Mas o que mais impressiona é uma frase curta, que ele nem chegou a terminar: “Eu não sei por que...”. É uma resposta corajosa. Afinal, é difícil encontrar um pastor que não se veja tentado a defender a ação de Deus no mundo, naquilo que se chama de teodiceia. “Eu não sei por que...”. Talvez seja a única resposta que tenhamos, num primeiro momento. Talvez seja a resposta com a qual teremos de conviver.

Por que Deus permite uma doença, um vírus, uma catástrofe, um acidente, uma coisa prejudicial? Será que existe resposta? Temos resposta na Bíblia? Alguém dirá: Por que não vamos ao livro de Jó? Sim, o livro de Jó. Se nós perguntamos: “Por que Deus permite essa tragédia?”, Jó tem perguntas semelhantes. De uma hora para outra ele perdeu todos os seus bens, os seus filhos e a sua saúde. Sentado em cinza, raspando as feridas com um caco de barro (Jó 2.8), ele questiona Deus: “Por que fizeste de mim o teu alvo?” (Jó 7.20). Depois, Jó se queixa, pedindo a Deus: “Faze-me saber o que tens contra mim” (Jó 10.2). Mais adiante, ele repete a pergunta: “Por que escondes o teu rosto e me consideras teu inimigo?” (Jó 13.24). Isso mostra que o livro de Jó trata do assunto que nos interessa.

Jó como livro

O livro de Jó é longo e difícil de traduzir. (Lutero deixou registrado que houve momentos em que ele e sua equipe ficavam uma semana lutando com um versículo.) Essa dificuldade tem muito a ver com o fato de ser poesia, recheada de termos raros. Mas, por ser poesia hebraica, que é feita de repetição, tudo é dito quase sempre duas vezes. O primeiro trechinho poético já é assim: “Pereça o dia em que nasci / e a noite em que se disse: Foi concebido um homem!” (Jó 3.3). Até seria possível dizer que, se o livro de Jó não fosse poético (como é, em sua maior parte), teria a metade da extensão. Mas, do jeito que foi escrito, é um torneio com longos discursos em linguagem poética.

O livro de Jó coloca um desafio ainda maior para quem se dispõe a explicá-lo. Muitos falam sobre ele, mas nem sempre o leem do começo ao fim. Para muitos, o livro Jó trata simplesmente de um conflito entre Deus e o diabo. Esses não entenderam nada.

            Ao se ler o livro de Jó, o maior perigo é a “versiculite”, ou seja, a prática de ler sempre e apenas versículos isolados. Quem fizer isso pode acabar com doutrina falsa, porque muito do que Jó e os seus amigos dizem é falso, ao menos em parte. E as mentiras mais perigosas são aquelas que estão bem próximas da verdade. Assim, o livro de Jó foi escrito para refutar muitos dos pensamentos que os personagens expressam. Por isso, cuidado com a “versiculite”!

O princípio da retribuição

            Os personagens do livro são, além do próprio Jó, os amigos dele: Elifaz, Bildade, Zofar. Há um quarto amigo, Eliú, que entra em cena mais tarde, no capítulo 32. Eles se revezam em vários ciclos de discursos, e no meio disso Jó também fala. No final, Deus intervém. No primeiro ciclo de falas (caps. 3—14), os amigos aconselham Jó. No segundo ciclo (caps. 15—21), abordam o destino dos maus. No terceiro ciclo (caps. 22—27), acusam Jó. Quando Eliú começa a falar (caps. 32—37), dá a entender que o sofrimento é mais um remédio do que uma punição, algo destinado a levar a pessoa a confessar os seus erros.

Esses personagens representam os sábios do mundo antigo, a filosofia daquele tempo. E, é claro, também o pensamento de muita gente de nossos dias.  Eles acreditam no que chamamos de “princípio da retribuição”. Em uma frase, é o seguinte: “O justo irá prosperar e o ímpio irá sofrer”. Dito de outra forma, tudo o que acontece na vida de uma pessoa, seja bom ou ruim, é resultado direto daquilo que ela fez ou deixou de fazer. Quando os discípulos perguntaram a Jesus, “quem pecou para que este homem nascesse cego?” (Jo 9.2), estavam acionando o princípio da retribuição.

O princípio da retribuição aparece na Bíblia. O melhor exemplo é o livro de Deuteronômio: Se vocês ouvirem a voz de Deus, tudo irá bem; se não derem ouvidos, virá o castigo. O Salmo 26 é outro exemplo. Uma formulação bem resumida aparece em Provérbios 10.24: “Aquilo que o ímpio teme, isso lhe sobrevém; o que os justos desejam Deus lhes concede”. Pode-se dizer que esse princípio da retribuição é uma característica da lei de Deus. A assim chamada teologia da prosperidade (“eu faço a minha parte, para que Deus faça a parte dele”) é uma aplicação desse princípio. A aplicação mais radical se dá no espiritismo: “Aqui se faz e aqui se paga; nada acontece por acaso; tudo que se faz ou deixa de fazer terá consequências”. Esse princípio da retribuição tem o seu fascínio, porque traz a sensação, falsa, é claro, de que podemos controlar o nosso destino.

No entanto, além de não ser evangelho, o princípio da retribuição não é tudo o que a Bíblia ensina. O livro de Eclesiastes levanta suspeita em relação ao princípio. Se o livro de Provérbios ensina: “faça isso que vai dar certo”, o livro de Eclesiastes responde: “a gente fez, e tudo acabou num vazio; a morte nivela todo mundo”. Mas a crítica mais contundente a essa lógica aparece no livro de Jó.

Os amigos de Jó quiseram forçá-lo a confessar um pecado, porque um homem que se encontrava naquele tipo de desgraça só poderia ser um grande pecador. Deus castiga os ímpios. Assim, se você é vítima de tragédia, só pode ser ímpio. Jó responde que isso não é verdade, porque os ímpios “passam os seus dias em prosperidade e em paz descem à sepultura” (Jó 21.13). Um texto que deveria levar à reflexão os defensores da teologia da prosperidade!

A reação de Jó

            Jó opera com o mesmo princípio da retribuição, mas não concorda que ele se aplique ao seu caso. Afinal, não lhe ocorre nenhuma falta grave que pudesse justificar toda aquela desgraça. Por isso ele resiste às tentativas dos “consoladores que só aumentam o sofrimento” (Jó 16.2) de levá-lo a confessar. Ele se dirige aos amigos, dizendo: “Longe de mim que eu dê razão a vocês!” (Jó 27.5). A conclusão a que chega, dentro da lógica da retribuição, é esta: “Deus foi injusto comigo e me cercou com a sua rede” (Jó 19.6). Um dos remédios que ele receita a si mesmo para superar a dor é confrontar Deus: “Que o Todo-Poderoso me responda! Que o meu adversário escreva a sua acusação!” (Jó 31.35).

O grande ensino do livro de Jó

            Qual é, então, a resposta ao problema da pandemia? Por que Deus permite? A resposta de Rick Warren encerra uma grande verdade: “Eu não sei por que...” Esta é uma resposta muito melhor do que tentar encontrar uma explicação em termos de causa e efeito, algo do tipo “É por causa da nossa frieza espiritual” ou “É porque o mundo se esqueceu de Deus”.

A resposta do livro de Jó aparece no final, nas palavras de Deus (cap. 38 em diante). “Do meio de um redemoinho, o SENHOR respondeu a Jó e disse: Quem é este que obscurece os meus planos com palavras sem conhecimento? Cinja os lombos como homem, pois eu lhe farei perguntas, e você me responderá. Onde você estava, quando eu lancei os fundamentos da terra? Responda, se você tem entendimento. Quem determinou as medidas da terra, se é que você o sabe?” (Jó 38.1-5). À primeira vista, parece que temos aqui uma fuga, uma resposta que não responde. No entanto, o efeito cumulativo dessas palavras de Deus, ao final do livro de Jó, é este: “Como Deus é sábio!” Assim, em vez de tentar explicar tudo como reflexo da justiça (ou injustiça!) de Deus, o livro de Jó nos convida a confiar na sabedoria de Deus! Não surpreende, visto que Jó faz parte dos “livros de sabedoria”.

Não conseguimos entender como Deus governa o mundo. Nossas explicações são “palavras sem conhecimento”. Quem lançou os fundamentos da terra foi Deus! A pior explicação, por ser errada, é essa que apela ao princípio da retribuição e pensa que tudo pode ser reduzido a uma simples fórmula: “se formos bons, seremos abençoados; se estamos em meio à pandemia, é porque somos maus”. A resposta de Deus é esta: “Vocês não vão entender, nem precisam me defender; confiem em mim”. Se pudéssemos entender tudo, não haveria necessidade de confiar em Deus. Ele nos assegura: “Eu sou Deus; vocês podem confiar em minha sabedoria”.

Cristo é a sabedoria de Deus personificada e encarnada. Assim, a melhor resposta para o nosso “por quê?” é confiar em Cristo. Com isso, a discussão teológica dá lugar a uma vivência com Deus. Confiando em Jesus, podemos dizer com Jó: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem” (Jó 42.5).

Ao concluir, estimulo você a reler o livro de Jó. Leia do começo ao fim, de uma só vez. Alguém escreveu que o livro se destina mais a nos preparar para as crises do que propriamente para nos sustentar no meio delas. Claro, a esta altura, em maio de 2020, estamos no meio da crise e não há mais tempo para preparo. Mas nem por isso a “resposta a Jó”, dada pelo próprio Deus, deixa de ter significado.

Vilson Scholz

Professor de Teologia no Seminário Concórdia vscholz@uol.com.br

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