O isolamento social e eu


20/04/2020 #Artigos #Editora Concórdia

O alarde feito por igrejas e “profetas” a respeito do coronavírus: o juízo direto de Deus sobre uma humanidade ou o fim do mundo em breve

O isolamento social e eu

Muito alarde tem sido feito por igrejas e “profetas” a respeito do coronavírus. Uns veem o juízo direto de Deus sobre uma humanidade desregrada que se afasta cada vez mais de Deus. Outros anunciam o fim do mundo para breve. Isaías 26.20 é citado para comprovar a necessidade de isolamento pela Bíblia: “Meu povo, entrem nos seus quartos e tranquem as portas; escondam-se por um momento, até que passe a ira”. As pragas do Egito são citadas, e a necessidade de se ficar trancado em casa para não ser atingido pela décima praga é acentuada: “E que nenhum de vocês saia da porta da sua casa até pela manhã” (Êx 12.22). O morcego é citado entre os animais impuros, que não podiam ser comidos pelo povo de Deus (Lv 11.19); e o fato de chineses o comerem, provocando a pandemia, é olhado como castigo de Deus pela desobediência à sua lei. Teorias mil têm surgido, tentando explicar o fato ou achar culpados.

Não se pode negar que a pandemia que se instalou é uma chamada ao fato de que somos frágeis e a nossa vida é limitada, podendo ser encurtada sem aviso prévio. Pode ser listada também como um dos sinais do fim, como faz a versão ARC: “Porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino, e haverá fomes, e pestes, e terremotos, em vários lugares” (Mt 24.7). Mas Jesus diz que estes sinais são apenas o início das dores e que ainda não é o fim. Cada um destes sinais no decorrer dos séculos tem por objetivo nos lembrar de que o fim virá e que devemos estar preparados em arrependimento e fé. São como o toque do sino de uma igreja, avisando que daqui a pouco o culto terá seu início.

Talvez nunca, antes, na história recente, o mundo se voltou tanto a Deus em oração como nestes tempos de pandemia. Mesmo com as igrejas fechadas, os recursos de comunicação multiplicaram a comunicação da Palavra. Em vez de 100 pessoas frequentando a igreja, temos centenas acompanhando o mesmo culto online.

Quando escrevo este texto, faz hoje exato um mês que estamos trancados em casa por ordem restrita do governo sul-africano. E não sabemos quando o direito de ir e vir será liberado. Posso ir ao supermercado uma vez por semana em horário especial para os acima de 60, e minha esposa saiu uma vez para uma emergência no dentista.

Temos o que fazer em casa: ler, escrever, preparar aulas, responder e-mails, preparar projetos, fazer relatórios, dar orientação à distância, conversar ao telefone com os alunos do seminário e com a liderança de Moçambique, experimentar receitas de culinária... Mas esta situação está cansando. Um sentimento de inutilidade está tomando conta por não podermos interagir com outras pessoas, não podermos conviver com os alunos em sala de aula e fora dela, não poder ir ao culto e participar da santa ceia, não ser útil para alguém...

Às vezes me sinto como o preguiçoso descrito em Provérbios 26.13,14: “O preguiçoso diz: ‘Um leão está no caminho! Um leão está no meio da rua!’ A porta gira nas dobradiças; o preguiçoso se vira na cama”.

Acompanhei alguns dos meus congregados quando entraram em depressão após se aposentarem e pararem de trabalhar regularmente. Hoje os entendo melhor. A falta de uma rotina, do compromisso, do horário, do bate-papo com os colegas, dos desafios do dia a dia, nos deprime. Até já estou com saudade do engarrafamento do trânsito a cada manhã indo para o escritório....

Desculpem, mas ainda não estou bem convencido do isolamento social que foi imposto. Meu salário continua entrando regularmente a cada mês. Mas e aqueles que dependem da sua mão de obra para ganhar o pão de cada dia? O empreiteiro e seus trabalhadores que estavam fazendo umas reformas no seminário, estão vivendo do quê? As faxineiras e jardineiros que trabalham em nosso condomínio estão proibidos de saírem dos seus bairros. Tem policiais fechando o acesso. Estamos pagando a nossa faxineira mesmo sem ela vir trabalhar, pois sabemos que ela precisa deste dinheiro para comprar pão para a família. A banca de flores no mercado está vazia, o que significa que o produtor está jogando todo o seu produto fora; flor não é considerada produto de primeira necessidade. Vi reportagens de agricultores jogando fora toda a produção de frutas e verduras, pois os restaurantes que compravam regularmente a produção estão fechados. Quem paga o prejuízo? Queremos fazer pão em casa, mas não tem fermento e às vezes não tem farinha. E isso sem contar com a falta de uma série de outros produtos.

Não tenho solução nem tenho resposta a estes desafios. Só peço a Deus por misericórdia.

A reação de Lutero quando enfrentou uma situação de pandemia na sua época me deixou refletindo bastante. Uma nova onda da peste bubônica havia invadido a cidade em que morava e muitas outras cidades da Europa. Lutero foi aconselhado a sair de cidade com sua família, como muitos já haviam feito. Sua esposa estava grávida. Mas Lutero toma uma atitude corajosa, aliás, uma característica deste grande servo de Deus. Mesmo não sendo médico ou enfermeiro, resolve ficar para ajudar os doentes, hospedando muitos em sua própria casa, que tinha muitos quartos disponíveis. Perguntado por um colega pastor qual deveria ser a atitude de um cristão diante da praga, Lutero escreveu um pequeno livreto que está rodando a internet e que eu compartilho para reflexão a todos e para encorajamento aos profissionais da saúde, que precisam se expor para cuidar da saúde da população. O livreto chama-se “Se alguém pode fugir de uma praga mortal”. E um resumo dele na internet reporta:

Pedirei a Deus para, misericordiosamente, proteger-nos.

Então farei vapor, ajudarei a purificar o ar, a administrar remédios e a tomá-los.

Evitarei lugares e pessoas onde minha presença não é necessária para não ficar contaminado e, assim, porventura infligir e poluir outros e, portanto, causar a morte como resultado da minha negligência.

Se Deus quiser me levar, ele certamente me levará e eu terei feito o que ele esperava de mim e, portanto, não sou responsável pela minha própria morte ou pela morte de outros.

Se meu próximo precisar de mim, não evitarei o lugar ou a pessoa, mas irei livremente conforme declarado acima.

Veja que essa é uma fé que teme a Deus, porque não é ousada nem insensata e não tenta a Deus.''

Noutro trecho diz: “Sim, ninguém deve deixar seu vizinho sem cuidados, a menos que haja outros que cuidem dos doentes em seu lugar e os alimentem. Devemos respeitar a palavra de Cristo: ‘Eu estava enfermo e vocês me visitaram’ (Mt 25.36). De acordo com esta passagem, estamos ligados um ao outro de tal forma que ninguém pode abandonar o outro em sua angústia, mas é obrigado a ajudá-lo como ele mesmo gostaria de ser ajudado.”

Sem entrar em pânico, mas também sem acomodar-se confortavelmente em seu lar, veja o que você pode fazer para aliviar a necessidade do seu semelhante, seja na área de saúde, seja na área de alimentação e outros cuidados. E ore, ore muito para que Deus abrevie estes dias de isolamento social e de angústia, para podermos voltar à normalidade.

Pastor Carlos Walter Winterle

 Pretoria, RSA

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