Na Fórmula de Concórdia de 1577, que faz parte
do Livro de Concórdia, os luteranos confessam que “somente os escritos
proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo Testamento são a única regra e
norma, segundo a qual devem ser avaliadas e julgadas igualmente todas as
doutrinas e todos os mestres”. A Bíblia é a única regra e norma da teologia. Diante
disso, fazer uma leitura adequada ou correta da Bíblia passa a ter importância
fundamental.
O
legado de Lutero
A
Reforma do século 16 resultou de um olhar atento para textos bíblicos. Ao fazer
a exegese da Carta aos Romanos, Lutero descobriu que “justiça de Deus” é, acima
de tudo, algo que Deus tem para nos dar. O pedido do salmista, “livra-me por
tua justiça” (Sl 71.2), não faria sentido se justiça fosse algo que nós temos
de produzir. Essa descoberta do evangelho trouxe também uma guinada no campo da
interpretação bíblica. Fazer distinção entre as duas mensagens de Deus dentro
da Bíblia, a saber, entre lei e evangelho, passou a ser um princípio fundamental
de interpretação, ao lado de princípios mais elementares como ler os textos
sempre dentro de seu contexto.
Essas ênfases de Lutero e de
seus colegas de Wittenberg foram repassadas às novas gerações. O Livro de
Concórdia confirma isso. Nele existe muita exegese bíblica, feita com
sadios princípios de interpretação. Do Livro de Concórdia pode-se extrair
um curso de interpretação bíblica, como mostra o livro Princípios de
Interpretação Bíblica nas Confissões Luteranas (Concórdia, 1970; edição
esgotada). Em 1567, dez anos antes da Fórmula de Concórdia, o teólogo luterano Matias
Flacius Ilírico publicou um extenso manual de interpretação bíblica, intitulado
Chave da Escritura Sagrada. Escrito em latim, com umas 600 páginas, esse
denso e longo tratado de hermenêutica, o primeiro no âmbito do luteranismo,
traz também um interessante estudo sobre metáforas bíblicas.
Prosa
e poesia
Quem lê a Bíblia precisa levar
em conta que ela é feita de prosa e poesia. Em outras palavras, há textos bíblicos
que têm sentido literal e textos que têm sentido figurado. Não nos compete determinar,
assim de forma arbitrária, que isto é literal e aquilo é figurado, pois quem
tomou essa decisão foi o escritor bíblico, no ato de escrever. A nós cabe, sim,
perceber o que é literal e o que é figurado e fazer a leitura adequada ou condizente.
Identificar e respeitar a diferença entre literal e figurado é um grande
desafio na leitura da Bíblia. O desrespeito a essa norma traz problemas, para
não dizer que resulta em heresia.
Literal
até prova em contrário
O princípio fundamental é que
o sentido de uma passagem bíblica é literal a menos que o próprio texto indique
que existe uma figura. Isso significa que devemos tomar as palavras e frases em
seu sentido literal até prova em contrário, ou seja, até que se encontre algo
que, tomado em sentido literal, é absurdo ou resulta em doutrina falsa.
O reformador suíço Ulrico
Zwínglio, que morreu no campo de batalha em 1531, tratou de aplicar esse
princípio às palavras de Jesus na instituição da Santa Ceia. Jesus disse: “Isto
é o meu corpo”, “Isto é o meu sangue”. Zwínglio citou as palavras de Jesus em
João 6.63 (“a carne para nada aproveita”) e argumentou que essa ideia de um
comer físico que pudesse ter um benefício espiritual era absurda. Para evitar o
absurdo, Zwínglio propôs que o verbo “é” deveria ser entendido no sentido
figurado de “significa”. Ou seja, “isto é o meu corpo” deveria ser lido como
“isto significa o meu corpo”. Lutero respondeu que a figura nunca
poderia estar no verbo “é”. Uma formulação parecida ajuda a entender o assunto.
Jesus disse: “Eu sou a videira”. A figura não está na forma verbal “sou”, mas
na palavra “videira”. Cristo “é” (ele não “parece ser”) a videira. Mas Cristo
não é literalmente um pé de uva, o que mostra que videira tem um sentido
figurado.
Voltando às palavras com que
Jesus instituiu a Santa Ceia (“isto é o meu corpo”), é verdade que elas soam
estranhas. No entanto, elas não são absurdas, na medida em que vêm daquele que
disse: “Toda a autoridade me foi dada (ou, todo o poder me foi dado) no céu e
na terra” (Mt 28.18). Agora, se você estiver num culto de uma igreja evangélica
não luterana, e aquele for um dia de Ceia, provavelmente ouvirá o pastor dizer
com muita tranquilidade que “o pão simboliza o corpo de Cristo”. Nós entendemos
que isto é ler de forma figurada um texto que quer ser entendido de forma
literal. (Para mais detalhes, veja
aqui
o livro Isto é o meu corpo, de
Hermann Sasse, Concórdia, 2003, p. 114-117.)
Literalistas
dentro da Bíblia
O outro extremo na
interpretação bíblica é tomar em sentido literal o que é poético ou figurado.
Esse perigo é real, e aumenta na medida em que os leitores não percebem que há muita
poesia e linguagem figurada na Bíblia. Como a Bíblia é um livro sério –
tremendamente sério – o leitor tende a imaginar que tudo precisa ser lido ao pé
da letra.
Já existem literalistas na Bíblia.
O melhor exemplo vem das pessoas com as quais Jesus dialoga no Evangelho de
João. Não raras vezes a conversa resulta em mal-entendido, uma situação em que
palavras de Jesus que têm sentido figurado ou espiritual são entendidas de
forma literal. Bem conhecida é a reação de Nicodemos diante das palavras de
Jesus, em que ele fala sobre nascer de novo: “Como pode um homem nascer, sendo
velho?” (Jo 3.4). Mas, antes disso, no Templo, os judeus já tinham entendido Jesus
literalmente, quando este falou: “Destruam este santuário, e em três dias eu o
levantarei” (Jo 2.19). Para que não incorramos no mesmo erro, o evangelista nos
socorre, explicando que “ele se referia ao santuário do seu corpo” (Jo 2.21).
Depois, a mulher samaritana não entendeu o que Jesus queria dizer com “água
viva” (Jo 4.11), os judeus pensaram que Jesus, ao falar sobre a sua volta para
junto do Pai, estava com a intenção de ensinar os gregos da diáspora (Jo 7.35),
e assim por diante.
Antropomorfistas
Um
grupo bem esquisito de literalistas cristãos foram os antropomorfistas, uma
seita cristã do quarto século de nossa era, na região da Síria. Interpretaram Gênesis
1.27 de forma bem literal e afirmavam que Deus tinha forma humana. Afinal, se
Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, a recíproca teria de ser
verdadeira: Deus tem a mesma “forma” do ser humano. (Daí vem o termo “antropomorfismo”,
quer dizer “em forma de homem”.) Além disso, textos em que se fala sobre as
mãos, o braço, os olhos, os ouvidos de Deus, sem falar das emoções tipicamente
humanas como ira, pesar, alegria etc. parecem confirmar o que aqueles hereges
ensinavam. Desde que se faça, é claro, leitura bem literal. Mas essa forma de
pensar, que ignora as metáforas, pode ser facilmente refutada. Aplicada com
rigor, levaria à conclusão de que Deus é um pássaro, porque a Bíblia fala, mais uma vez num sentido
figurado, sobre as penas e as asas de Deus: “Ele (o Altíssimo) o cobrirá com as
suas penas, e, sob as suas asas, você estará seguro” (Sl 91.4). Aqui, as penas
e as asas simbolizam o amor de Deus. E, por meio das metáforas, Deus se adapta
à nossa maneira de entender as coisas.
Essa heresia dos
antropomorfistas não teve grande aceitação, até por ser tão grosseira. Mas esse
modo de pensar, depois de ter sido reavivado por um breve período na Itália, durante
a Idade Média, foi adotado, em nosso tempo, pelos mórmons.
A
percepção intuitiva do que é figurado
Em geral, até mesmo as
pessoas mais simples percebem, de forma intuitiva, que certas palavras não
podem ser tomadas em seu sentido literal. Assim, quando Paulo chama os cristãos
da Galácia de “meus filhos” (Gl 4.19), logo se percebe, à luz do versículo como
um todo, que aqueles gálatas não eram filhos biológicos do apóstolo dos gentios,
que nem mesmo casado era. E, quando, na Igreja, somos chamados de “irmãos e
irmãs”, logo sabemos que se tem em vista a família da fé, e não uma família
biológica. Agora, quando Jó se dirige aos amigos que vieram consolá-lo em
termos de “vocês são o povo, e com vocês morrerá a sabedoria” (Jó 12.2), talvez
seja mais difícil perceber a ironia, ou seja, o fato de que Jó está querendo
dizer exatamente o contrário. A continuação do texto deixa isso claro, pois Jó
diz: “Mas eu também tenho entendimento”. Fica claro que os amigos de Jó não tinham
o monopólio da sabedoria!
Para
entender a figura do leão
Há
algumas regras bem simples para entender metáforas. Em primeiro lugar, saber o
que a palavra ou frase significa literalmente. Se alguém não sabe que
“baluarte” equivale a “fortaleza” e que “fortaleza” é “um lugar fortificado”,
terá dificuldade com a afirmação do Salmo 18.2: Deus é “o meu baluarte”. (Por
isso, na NAA isso foi alterado para “meu alto refúgio”. A NTLH tira a metáfora
e diz “com ele estou seguro”.) Para entender os usos figurados de “leão”, na
Bíblia, é necessário, em primeiro lugar, ter uma ideia do que é um leão. Não
basta saber que o leão é um grande felino que tem juba e ruge, se a gente
ignora que ele é um animal forte, predador, que impõe respeito e, por isso, é chamado
de rei dos animais. Numa metáfora, algumas dessas características (como força,
coragem, majestade, destruição) são acionadas, ao passo que outras (a cor, a
juba etc.) não entram em consideração.
Na Bíblia, o leão pode simbolizar
diferentes coisas, em diferentes contextos: a tribo de Judá (Gn 49.9), o
próprio Deus (Am 1.2: “o Senhor rugirá...”), Cristo (Ap 5.5), e também o diabo
(1Pe 5.8). Assim, de nada adianta ter uma tabela de equivalência do tipo “leão
= força”. É preciso respeitar outra regra para a interpretação de metáforas,
que é entender cada metáfora dentro de seu contexto. É necessário ver cada leão
dentro de seu contexto. Cristo é leão por ser Rei vitorioso (Ap 5.5), forte e bondoso.
O diabo é leão por ser um cruel destruidor, procurando alguém para devorar (1Pe
5.8).
Conclusão
A
Bíblia tem de ser lida ao pé da letra? A princípio, a resposta é sim. Mas isso
não vale se o texto é poético ou figurado, como acontece com frequência na
Bíblia. As figuras e metáforas contribuem para a beleza do texto sagrado. E metáforas
são também frequentes em nossa fala e escrita. Elas são mais comuns do que
muita gente imagina. Quando dizemos, “entender ao pé da letra”, já usamos uma
metáfora, porque letra não tem pé. Mas saber que o pé fica para baixo, junto ao
chão, ajuda a entender essa expressão idiomática.
Metáforas
existem e não são poucas, na Bíblia. Estar consciente disso já é um bom começo
para uma leitura adequada da Palavra de Deus.
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