“A Bíblia tem de ser lida ao pé da letra!”


Ler em formato flip
04/11/2020 #Artigos #Editora Concórdia

Será que é isso mesmo?

“A Bíblia tem de ser lida ao pé da letra!”

Na Fórmula de Concórdia de 1577, que faz parte do Livro de Concórdia, os luteranos confessam que “somente os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo Testamento são a única regra e norma, segundo a qual devem ser avaliadas e julgadas igualmente todas as doutrinas e todos os mestres”. A Bíblia é a única regra e norma da teologia. Diante disso, fazer uma leitura adequada ou correta da Bíblia passa a ter importância fundamental.

 

O legado de Lutero

         A Reforma do século 16 resultou de um olhar atento para textos bíblicos. Ao fazer a exegese da Carta aos Romanos, Lutero descobriu que “justiça de Deus” é, acima de tudo, algo que Deus tem para nos dar. O pedido do salmista, “livra-me por tua justiça” (Sl 71.2), não faria sentido se justiça fosse algo que nós temos de produzir. Essa descoberta do evangelho trouxe também uma guinada no campo da interpretação bíblica. Fazer distinção entre as duas mensagens de Deus dentro da Bíblia, a saber, entre lei e evangelho, passou a ser um princípio fundamental de interpretação, ao lado de princípios mais elementares como ler os textos sempre dentro de seu contexto.

Essas ênfases de Lutero e de seus colegas de Wittenberg foram repassadas às novas gerações. O Livro de Concórdia confirma isso. Nele existe muita exegese bíblica, feita com sadios princípios de interpretação. Do Livro de Concórdia pode-se extrair um curso de interpretação bíblica, como mostra o livro Princípios de Interpretação Bíblica nas Confissões Luteranas (Concórdia, 1970; edição esgotada). Em 1567, dez anos antes da Fórmula de Concórdia, o teólogo luterano Matias Flacius Ilírico publicou um extenso manual de interpretação bíblica, intitulado Chave da Escritura Sagrada. Escrito em latim, com umas 600 páginas, esse denso e longo tratado de hermenêutica, o primeiro no âmbito do luteranismo, traz também um interessante estudo sobre metáforas bíblicas.

 

Prosa e poesia

Quem lê a Bíblia precisa levar em conta que ela é feita de prosa e poesia. Em outras palavras, há textos bíblicos que têm sentido literal e textos que têm sentido figurado. Não nos compete determinar, assim de forma arbitrária, que isto é literal e aquilo é figurado, pois quem tomou essa decisão foi o escritor bíblico, no ato de escrever. A nós cabe, sim, perceber o que é literal e o que é figurado e fazer a leitura adequada ou condizente. Identificar e respeitar a diferença entre literal e figurado é um grande desafio na leitura da Bíblia. O desrespeito a essa norma traz problemas, para não dizer que resulta em heresia.

 

Literal até prova em contrário

O princípio fundamental é que o sentido de uma passagem bíblica é literal a menos que o próprio texto indique que existe uma figura. Isso significa que devemos tomar as palavras e frases em seu sentido literal até prova em contrário, ou seja, até que se encontre algo que, tomado em sentido literal, é absurdo ou resulta em doutrina falsa.

O reformador suíço Ulrico Zwínglio, que morreu no campo de batalha em 1531, tratou de aplicar esse princípio às palavras de Jesus na instituição da Santa Ceia. Jesus disse: “Isto é o meu corpo”, “Isto é o meu sangue”. Zwínglio citou as palavras de Jesus em João 6.63 (“a carne para nada aproveita”) e argumentou que essa ideia de um comer físico que pudesse ter um benefício espiritual era absurda. Para evitar o absurdo, Zwínglio propôs que o verbo “é” deveria ser entendido no sentido figurado de “significa”. Ou seja, “isto é o meu corpo” deveria ser lido como “isto significa o meu corpo”. Lutero respondeu que a figura nunca poderia estar no verbo “é”. Uma formulação parecida ajuda a entender o assunto. Jesus disse: “Eu sou a videira”. A figura não está na forma verbal “sou”, mas na palavra “videira”. Cristo “é” (ele não “parece ser”) a videira. Mas Cristo não é literalmente um pé de uva, o que mostra que videira tem um sentido figurado.

Voltando às palavras com que Jesus instituiu a Santa Ceia (“isto é o meu corpo”), é verdade que elas soam estranhas. No entanto, elas não são absurdas, na medida em que vêm daquele que disse: “Toda a autoridade me foi dada (ou, todo o poder me foi dado) no céu e na terra” (Mt 28.18). Agora, se você estiver num culto de uma igreja evangélica não luterana, e aquele for um dia de Ceia, provavelmente ouvirá o pastor dizer com muita tranquilidade que “o pão simboliza o corpo de Cristo”. Nós entendemos que isto é ler de forma figurada um texto que quer ser entendido de forma literal. (Para mais detalhes, veja aqui o livro Isto é o meu corpo, de Hermann Sasse, Concórdia, 2003, p. 114-117.)

 

Literalistas dentro da Bíblia

O outro extremo na interpretação bíblica é tomar em sentido literal o que é poético ou figurado. Esse perigo é real, e aumenta na medida em que os leitores não percebem que há muita poesia e linguagem figurada na Bíblia. Como a Bíblia é um livro sério – tremendamente sério – o leitor tende a imaginar que tudo precisa ser lido ao pé da letra.

Já existem literalistas na Bíblia. O melhor exemplo vem das pessoas com as quais Jesus dialoga no Evangelho de João. Não raras vezes a conversa resulta em mal-entendido, uma situação em que palavras de Jesus que têm sentido figurado ou espiritual são entendidas de forma literal. Bem conhecida é a reação de Nicodemos diante das palavras de Jesus, em que ele fala sobre nascer de novo: “Como pode um homem nascer, sendo velho?” (Jo 3.4). Mas, antes disso, no Templo, os judeus já tinham entendido Jesus literalmente, quando este falou: “Destruam este santuário, e em três dias eu o levantarei” (Jo 2.19). Para que não incorramos no mesmo erro, o evangelista nos socorre, explicando que “ele se referia ao santuário do seu corpo” (Jo 2.21). Depois, a mulher samaritana não entendeu o que Jesus queria dizer com “água viva” (Jo 4.11), os judeus pensaram que Jesus, ao falar sobre a sua volta para junto do Pai, estava com a intenção de ensinar os gregos da diáspora (Jo 7.35), e assim por diante.

 

Antropomorfistas

         Um grupo bem esquisito de literalistas cristãos foram os antropomorfistas, uma seita cristã do quarto século de nossa era, na região da Síria. Interpretaram Gênesis 1.27 de forma bem literal e afirmavam que Deus tinha forma humana. Afinal, se Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, a recíproca teria de ser verdadeira: Deus tem a mesma “forma” do ser humano. (Daí vem o termo “antropomorfismo”, quer dizer “em forma de homem”.) Além disso, textos em que se fala sobre as mãos, o braço, os olhos, os ouvidos de Deus, sem falar das emoções tipicamente humanas como ira, pesar, alegria etc. parecem confirmar o que aqueles hereges ensinavam. Desde que se faça, é claro, leitura bem literal. Mas essa forma de pensar, que ignora as metáforas, pode ser facilmente refutada. Aplicada com rigor, levaria à conclusão de que Deus é um pássaro, porque a Bíblia fala, mais uma vez num sentido figurado, sobre as penas e as asas de Deus: “Ele (o Altíssimo) o cobrirá com as suas penas, e, sob as suas asas, você estará seguro” (Sl 91.4). Aqui, as penas e as asas simbolizam o amor de Deus. E, por meio das metáforas, Deus se adapta à nossa maneira de entender as coisas.

Essa heresia dos antropomorfistas não teve grande aceitação, até por ser tão grosseira. Mas esse modo de pensar, depois de ter sido reavivado por um breve período na Itália, durante a Idade Média, foi adotado, em nosso tempo, pelos mórmons.

 

A percepção intuitiva do que é figurado

Em geral, até mesmo as pessoas mais simples percebem, de forma intuitiva, que certas palavras não podem ser tomadas em seu sentido literal. Assim, quando Paulo chama os cristãos da Galácia de “meus filhos” (Gl 4.19), logo se percebe, à luz do versículo como um todo, que aqueles gálatas não eram filhos biológicos do apóstolo dos gentios, que nem mesmo casado era. E, quando, na Igreja, somos chamados de “irmãos e irmãs”, logo sabemos que se tem em vista a família da fé, e não uma família biológica. Agora, quando Jó se dirige aos amigos que vieram consolá-lo em termos de “vocês são o povo, e com vocês morrerá a sabedoria” (Jó 12.2), talvez seja mais difícil perceber a ironia, ou seja, o fato de que Jó está querendo dizer exatamente o contrário. A continuação do texto deixa isso claro, pois Jó diz: “Mas eu também tenho entendimento”. Fica claro que os amigos de Jó não tinham o monopólio da sabedoria!

 

Para entender a figura do leão

         Há algumas regras bem simples para entender metáforas. Em primeiro lugar, saber o que a palavra ou frase significa literalmente. Se alguém não sabe que “baluarte” equivale a “fortaleza” e que “fortaleza” é “um lugar fortificado”, terá dificuldade com a afirmação do Salmo 18.2: Deus é “o meu baluarte”. (Por isso, na NAA isso foi alterado para “meu alto refúgio”. A NTLH tira a metáfora e diz “com ele estou seguro”.) Para entender os usos figurados de “leão”, na Bíblia, é necessário, em primeiro lugar, ter uma ideia do que é um leão. Não basta saber que o leão é um grande felino que tem juba e ruge, se a gente ignora que ele é um animal forte, predador, que impõe respeito e, por isso, é chamado de rei dos animais. Numa metáfora, algumas dessas características (como força, coragem, majestade, destruição) são acionadas, ao passo que outras (a cor, a juba etc.) não entram em consideração.

Na Bíblia, o leão pode simbolizar diferentes coisas, em diferentes contextos: a tribo de Judá (Gn 49.9), o próprio Deus (Am 1.2: “o Senhor rugirá...”), Cristo (Ap 5.5), e também o diabo (1Pe 5.8). Assim, de nada adianta ter uma tabela de equivalência do tipo “leão = força”. É preciso respeitar outra regra para a interpretação de metáforas, que é entender cada metáfora dentro de seu contexto. É necessário ver cada leão dentro de seu contexto. Cristo é leão por ser Rei vitorioso (Ap 5.5), forte e bondoso. O diabo é leão por ser um cruel destruidor, procurando alguém para devorar (1Pe 5.8).

 

Conclusão

         A Bíblia tem de ser lida ao pé da letra? A princípio, a resposta é sim. Mas isso não vale se o texto é poético ou figurado, como acontece com frequência na Bíblia. As figuras e metáforas contribuem para a beleza do texto sagrado. E metáforas são também frequentes em nossa fala e escrita. Elas são mais comuns do que muita gente imagina. Quando dizemos, “entender ao pé da letra”, já usamos uma metáfora, porque letra não tem pé. Mas saber que o pé fica para baixo, junto ao chão, ajuda a entender essa expressão idiomática.

Metáforas existem e não são poucas, na Bíblia. Estar consciente disso já é um bom começo para uma leitura adequada da Palavra de Deus.

Assine o mensageiro luterano e fique por dentro dessa e outras notícias

Já é assinante?

Não sou assinante

Vilson Scholz

Professor de Teologia no Seminário Concórdia vscholz@uol.com.br

Artigos Leia mais


Notícias Leia mais


Assine o Mensageiro Luterano e
tenha acesso online ou receba a
nossa revista impressa

Ver planos