Lutero, um vocacionado professor, tornou-se uma
das pessoas mais influentes do último milênio, tanto pelo que fez em prol da
liberdade religiosa quanto pelos insights a uma educação ampla,
inclusiva e que levasse o povo a, pela disciplina da razão, vir a receber a
iluminação da Palavra de Deus a partir da leitura pessoal. Ou seja, ensino e
religião andam juntas desde os primórdios da era moderna.
Na Constituição brasileira do ano de 1988,
declarou-se que vivemos sob um Estado Democrático de Direito, logo no seu artigo
1º. Ou seja, que a sociedade política (o conjunto das forças vivas da nossa
nação) resolvia organizar-se institucionalmente como um Estado (um ente
especializado em realizar o bem comum das pessoas), respeitando os valores
culturais da maioria – e também, é verdade, os direitos de liberdade das várias
minorias – sob o império de leis justas que valham para todos, indistintamente.
Nesse contexto, também essa opção se
fundamentou em alguns pilares, dentre os quais a cidadania (inciso II) e a
dignidade da pessoa humana (III). Ser cidadão significa estar interessado nos
destinos da polis, o contexto social onde estamos inseridos – e, como
cristãos que somos, o lugar onde fomos chamados por Deus para estar, amar e
cuidar do próximo. Exercer a cidadania é, antes de tudo, um exercício de amor.
Já a dignidade da pessoa humana é o conjunto de liberdades fundamentais (dentre
as quais a religiosa é a primeira), de direitos sociais (como o acesso à
seguridade, à saúde, à educação, etc.) e de direitos de solidariedade (o
desenvolvimento, o direito à paz, ao meio ambiente e ao patrimônio comum da
humanidade). Esses fundamentos erigem o edifício da democracia brasileira.
O texto constitucional ainda diz da
educação: “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da
família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho”. Vemos aí a importância de uma educação
visando à formação de uma pessoa preparada tanto para ganhar seu sustento
(qualificação para o trabalho) como para a promoção do bem comum (pelo
exercício da cidadania). Na sequência, o art. 206 traz os princípios que
deverão ser observados para o ensino, e entre eles os incisos II (liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber) e III (pluralismo
de ideias [sic] e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino).
Aqui ainda temos de lembrar o que
significa viver sob um Estado laico. Diferentemente do que muito se fala, o
relacionamento de uma sociedade política com a religião varia bastante. O
modelo brasileiro é único. No plano geral, a laicidade colaborativa brasileira
se aproxima bastante da noção luterana de “distinção” entre igreja e Estado,
onde ambos vivem cada qual em sua esfera – a igreja, na esfera transcendente,
espiritual, e o Estado, na esfera imanente, material. O que une as duas é o
vínculo da amizade mútua e da solidariedade para a busca do bem comum. Este é o
espírito do art. 19, I, da nossa Constituição.
Justamente porque é responsabilidade de
toda a sociedade o cuidado com a formação integral das crianças (pessoas
humanas em formação e dotadas de dignidade intrínseca), e porque a religião
ocupa lugar de honra entre nós, é que o ensino religioso assume uma função
importante. O art. 210, §1º do texto constitucional diz que “ensino religioso,
de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental”. Isso mostra que a laicidade brasileira
assume que religião é assunto de ordem pública. Aqui o ensino da dimensão
espiritual da existência tanto deve ser feito pelas instituições apropriadas (a
igreja) quanto esta deve colaborar com o instrumento da sociedade política para
o bem comum (o Estado). Sem ela não há cidadania plena.
Mas qual ensino religioso? De que
natureza? Afinal, se o Estado não pode “estabelecer cultos religiosos ou
igrejas, subvencioná-los”, nem ainda “manter com eles ou seus representantes,
relações de dependência ou aliança”, combina com a laicidade um ensino
religioso confessional? Não deveria a escola apenas apresentar as várias
religiões? Não seria isso mais “democrático”?
Conforme tudo o que nós vimos até
agora, podemos dar uma resposta pública e uma espiritual. A pública é que,
justamente pela natureza de nosso relacionamento de amizade entre a fé e a política
– leia-se, entre a igreja e o Estado – podemos entender que, justamente pelo
princípio democrático, a herança cultural da maioria dita qual religião
constitui-se como elemento do povo para a fixação da civilização. E os dados do
IBGE no censo de 2010 (que tendem a sofrer uma modificação apenas no espectro
denominacional no censo desta década, com acréscimo no número de evangélicos e
diminuição no de católicos), mostra que, aproximadamente, 89% da população
brasileira professa a fé cristã nas várias tradições, sendo nós luteranos
confessionais aproximadamente 0,1% desta amostra total. Sim, o ensino religioso
pode ser confessional cristão porque o cristianismo é a religião predominante
em nosso meio.
Ademais, se fosse tarefa do Estado
organizar uma espécie de currículo mínimo para a disciplina de ensino
religioso, estaríamos diante de uma violação da laicidade. O Estado, ao
elaborar um currículo, necessariamente traria luz a conceitos no âmbito da religião,
ordenando os aspectos semânticos e metodológicos e, especialmente, obrigando os
alunos a estudar e se aprofundar naquilo que o Estado entende ou conhece de
religião e, como sabemos, em uma laicidade, o Estado deve ser neutro, e esta
neutralidade também deve ser exercida no âmbito do ensino. Evidentemente que,
como dito, para a elaboração de um currículo mínimo, o Estado deixaria esta
neutralidade de lado, incorrendo, assim, em uma violação da laicidade.
A resposta espiritual deixo para o
próprio Lutero. Ele diz: “A razão também é luz, e uma luz maravilhosa. Mas a
razão não pode encontrar o caminho que leva de pecado e morte à justiça e vida,
e ela permanece em penumbras. Assim como nossas lanternas e velas não iluminam
o céu e a terra, mas apenas os cantos escuros de nossas casas, sendo o sol que
dá a sua luz a céu e terra, brilhando em todos os lugares, assim também a
Palavra de Deus é o verdadeiro sol que nos confere o dia eterno para que
possamos viver e rejubilar” (W.A. 48, 76, apud FORELL, George. Fé ativa no amor. São Leopoldo: Sinodal;
Porto Alegre: Concórdia, 1977, p.50).
A educação amplia nossas faculdades
racionais para que possamos viver as diferentes vocações para as quais fomos
chamados à existência. Ter o acesso ao tesouro espiritual da civilização fixa
os valores mais importantes que os cidadãos brasileiros devem ter em mente. E o
ensino religioso, tanto na escola pública – quanto mais nas escolas privadas de
natureza confessional (e que bom seria se nos animássemos novamente, a exemplo
do Reformador: “Eine Kirche, eine Schule”, literalmente “Uma igreja, uma
escola”), onde a ampla liberdade religiosa nos dá a chance de um testemunho que
dura por toda a vida do pequeno aluno.
Ensinar sobre a Verdade revelada é uma
urgência no mundo atual, que vive a chamada “4ª Revolução Industrial”. Nos dias
em que a “verdade” é tão líquida, nada mais importante do que termos a chance
de mostrar a Rocha sobre qual a igreja é erigida, e as verdades eternas que
instruem tanto para esta vida quanto para aquela que há de vir.
Jean Marques Regina
Thiago Rafael Vieira
Advogados
Porto Alegre, RS