O século 20, lá no seu início, foi
anunciado como “o século da criança”. Será que foi? Quase no apagar das luzes,
em 1990, a ONU publicou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Um pouco
depois, em julho do mesmo ano, surgiu aqui no Brasil o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). Hoje, as crianças recebem um destaque que elas provavelmente
nunca tiveram no passado.
O que a Bíblia tem a
dizer a respeito das crianças? Elas aparecem mais vezes do que se poderia
esperar, especialmente se alguém pensa que é verdadeira a afirmação de que “as
crianças eram pouco lembradas e até mesmo desprezadas nos tempos antigos”. A
palavra criança (também no plural, crianças) aparece umas 200 vezes na Bíblia. Parece
pouco, se observarmos que o termo pai aparece mais de mil vezes. Mas não é tão
pouco assim, se levarmos em conta que o termo mãe também não é tão comum, aparecendo
apenas umas 300 vezes em nossa Bíblia.
Crianças na Bíblia é um
tema que interessa, porque é fato conhecido que a história do cristianismo
começa com uma criança, a saber, com o nascimento de Jesus. E Jesus abençoou as
crianças. Mas quem é considerado criança, na Bíblia? Até quando alguém é
criança? Nem todos têm a mesma definição. Para a ONU, criança é quem tem menos
de 18 anos de idade. No Brasil, de acordo com o ECA, criança é quem tem menos
de 12 anos. E na Bíblia? Que criança o sábio tinha em mente, ao formular o
conselho de Provérbios 22.6: “Ensine a criança no caminho em que deve andar”? E
que idade tinham as crianças que Jesus abençoou (Mc 10.16)?
Palavras
para “criança” no Antigo Testamento
Como ocorre em outros
idiomas, também em hebraico bíblico existem diferentes palavras para criança.
Em alguns casos, a derivação dessas palavras é bem sugestiva. Quando a tradução
ao português diz “criança de peito” (como em Sl 8.3 e Is 11.8), em muitos casos o que se traduz é o
termo hebraico yoneq, que pode ser usado também para designar um broto
ou um renovo (como em Is 53.2). Isso dá a entender que viam a criança que ainda
mamava no peito como uma “plantinha”.
Outro termo hebraico para
criança é tap, que sugere alguém que dá passinhos rápidos. Seria, neste
caso, o termo apropriado para uma criança que começa a andar. A palavra não tem
tradução uniforme em nossa Bíblia, podendo ser “criança” (Gn 34.29), “filhinho”
(Gn 43.8), “menino” (Jr 40.7).
Uma palavra hebraica com
um sentido mais amplo é naar, que existe também na forma feminina de
naarah. Normalmente o termo é traduzido
por “jovem”, mas em textos como Êxodo 2.6 precisa ser traduzido por “menino”,
pois se refere ao bebê Moisés. Fica a impressão de que a palavra naar (“jovem”)
pode ser usada para designar todos os que “não são velhos”. Assim, na conhecida
passagem de Provérbios 22.6 (“Ensine a criança no caminho em que deve andar, e
ainda quando for velho não se desviará dele”), o termo traduzido por criança é naar. Se o sentido é “não velho” ou “a pessoa ainda
em formação” (como o contraste com “ainda quando for velho” parece sugerir), a
passagem bíblica poderia ser traduzida também por “ensine o jovem no
caminho em que deve andar”.
A forma feminina dessa
palavra (naarah) é usada em 2Reis 5.2, que parece ser o único lugar onde
pode ser traduzida por “menina”. Trata-se daquela menina israelita que foi
levada como escrava pelo exército sírio e que acabou indicando o profeta Eliseu
ao general Naamã (aquele que foi curado da lepra). No entanto, também é possível
que aquela menina na realidade fosse uma jovem, pois ela trabalhava para a
mulher de Naamã. O texto bíblico, como de costume, não informa a idade.
Palavras
para “criança” no Novo Testamento
No Novo Testamento,
várias palavras gregas são usadas para o período da infância. Uma palavra mais
rara, usada apenas oito vezes no Novo Testamento, é bréphos. Costuma ser
traduzida por “criança”, mas pode designar um feto (o bebê ainda na barriga da
mãe), como em Lucas 1.41, e crianças recém-nascidas, como o menino Jesus, em Lucas
2.12. Quando Pedro compara o povo cristão a “crianças recém-nascidas”
(1Pe 2.2), o termo grego usado, com muita propriedade, é bréphos. Quando
se diz que Timóteo conhece as sagradas letras “desde a infância” (2Tm
3.15), o termo traduzido por infância é esse mesmo bréphos.
Um pouco mais frequente
(24 ocorrências) é o termo grego páis, do qual nos vieram palavras como pedagogia
e pedagogo. O termo pode ser usado em referência a crianças de modo
geral, de ambos os sexos. Em alguns textos (como Lc 7.7) significa “servo”. É
aplicado aos meninos de Belém que foram trucidados por ordem do rei Herodes (Mt
2.16). Esses meninos tinham menos de dois anos de idade. Mas, em Lucas 8.51, o
termo páis designa a filha de Jairo, que tinha doze anos. Também Jesus,
com doze anos, é chamado de páis, no conhecido episódio em que ele ficou
para trás, no Templo, em Jerusalém (Lc 2.43).
Outro termo grego para
criança, no Novo Testamento, é paidíon, que aparece mais de 50 vezes. Trata-se
de um diminutivo de páis. Assim, alguém poderia insistir que a tradução
teria de ser “criancinha”. No entanto, o termo tende a ser usado como simples
sinônimo de páis. De modo geral, pode-se dizer que paidíon designa
uma criança com menos de sete anos. O Jesus menino que os magos viram com Maria
era um paidíon (Mt 2.11). A criança que Jesus colocou no meio dos
discípulos em resposta à pergunta sobre quem seria o maior no Reino dos Céus é
chamada de paidíon. Por ser um diminutivo, a palavra podia ser usada
como termo afetivo. Na Primeira Carta de João, os cristãos são chamados de
“filhinhos” (1Jo 2.18).
Há mais um termo grego
para criança que merece ser destacado: nêpios, que em vários momentos (Mt
11.25; 21.16) é traduzido por “pequenino”. Pode ter a conotação de imaturo ou
inconstante, como em Efésios 4.14, onde se fala sobre ser arrastado pelas ondas
e levado por ventos de doutrina. Em 1Coríntios 13.11, Paulo usa o termo grego nêpios,
ao falar de sua infância em contraste com sua condição de homem adulto.
Crianças
nas Cartas de Paulo
O apóstolo Paulo, que era
solteiro e não tinha filhos, se dirige a membros de igrejas que ele havia
fundado em termos de “filhos” (1Co 4.14; 2 Co 6.13). Em vários momentos, Paulo
faz uso do termo criança num sentido figurado e com uma conotação negativa, deixando
claro que o alvo do cristão é deixar de ser criança. Em 1Coríntios 3.1, o
apóstolo reclama: “Não pude falar a vocês como a pessoas espirituais, e sim
como a pessoas carnais, como a crianças em Cristo”. Aqui, o termo grego
é nêpios, que poderia ser traduzido por “imaturos”. Em 1Coríntios 14.20
(“irmãos, não sejam meninos no entendimento”), o termo grego usado para
meninos é paidíon. Paulo é também o escritor que traz o texto mais
antigo (no contexto da Igreja) sobre a educação cristã dos filhos. Em Efésios
6.4, ele se dirige aos pais, dizendo que devem criar os filhos “na disciplina e
na admoestação do Senhor”.
Jesus
e as crianças
Segundo os Evangelhos, Jesus
nunca falou de sua própria infância. Também não falou diretamente com crianças.
(A exceção poderia ser Lucas 8.54, mas ali ele se dirige a uma menina, a filha
de Jairo, que havia morrido.) Em geral, a atitude de Jesus em relação às
crianças é positiva, pois elas são apresentadas como modelo (Mt 18.1-4).
Um episódio que não
poderia faltar é aquele em que Jesus abençoa as crianças. O relato se encontra
em três evangelhos: Mateus 19.13-15; Marcos 10.13-16; Lucas 18.15-17. Que
crianças eram aquelas? O texto diz que elas foram trazidas, dando a entender
que eram crianças de colo. Será que o termo grego ajuda? Em Mateus e Marcos, a
palavra usada é paidíon, o que poderia ser interpretado como “crianças com
menos de sete anos”. Já o evangelista Lucas usa o termo bréphos (Lc
18.15), deixando mais claro que eram crianças bem pequenas, crianças de colo.
Nossa tradução expressa isso muito bem, ao dizer “pequeninos”.
O relato de Marcos é o
mais completo, incluindo o detalhe de que Jesus tomou as crianças nos braços. No
entanto, os três evangelistas são unânimes quanto ao detalhe de que Jesus disse
que “dos tais é o Reino de Deus”. Isso é bem mais do que dizer (como a NTLH
traduz esses textos) que o Reino de Deus é “dos que são como eles”.
Jesus disse que o Reino é também das crianças. Como o Reino não pode ser
desvinculado do próprio Cristo, o fato de Jesus ter abraçado e abençoado as
crianças era a confirmação concreta daquilo que ele expressou com palavras.
Conclusão
Na Bíblia, não existe uma
“teologia da criança” como tal. Não se fala sobre o “valor” delas, mas as
crianças são valorizadas na medida em que Jesus as coloca como modelo de
discípulo e na medida em que o Reino de Deus é para elas também. Como disse
alguém, “Deus e salvação se encontram apenas ali onde as crianças também podem
estar”.
No entanto, as Cartas de
Paulo colocam um contraponto. Dirigindo-se a adultos, o apóstolo coloca como
ideal o abandono da fase da infância.
Disso se conclui que,
como de costume, o contexto de uma afirmação é fundamental. Sob um ponto de
vista, numa dimensão mais vertical ou na relação com Deus, precisamos ser crianças
até o fim da vida: na simplicidade da fé, na inocência em relação à maldade (1Co
14.20) e assim por diante. Sob outro ponto de vista, na perspectiva da compreensão
das coisas de Deus, o desafio é deixar de ser criança e amadurecer!
Nota:
Assista a palestra do dr. Vilson Scholz e demais preletores do 16º Fórum de
Ciências Bíblicas da Sociedade Bíblica do Brasil, sob o tema - A BÍBLIA E A
CRIANÇA aqui.