Crianças na Bíblia


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02/10/2020 #Artigos #Editora Concórdia

Quem é considerado criança, na Bíblia? Que idade tinham as crianças que Jesus abençoou?

Crianças na Bíblia

O século 20, lá no seu início, foi anunciado como “o século da criança”. Será que foi? Quase no apagar das luzes, em 1990, a ONU publicou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Um pouco depois, em julho do mesmo ano, surgiu aqui no Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Hoje, as crianças recebem um destaque que elas provavelmente nunca tiveram no passado.

 

O que a Bíblia tem a dizer a respeito das crianças? Elas aparecem mais vezes do que se poderia esperar, especialmente se alguém pensa que é verdadeira a afirmação de que “as crianças eram pouco lembradas e até mesmo desprezadas nos tempos antigos”. A palavra criança (também no plural, crianças) aparece umas 200 vezes na Bíblia. Parece pouco, se observarmos que o termo pai aparece mais de mil vezes. Mas não é tão pouco assim, se levarmos em conta que o termo mãe também não é tão comum, aparecendo apenas umas 300 vezes em nossa Bíblia.

Crianças na Bíblia é um tema que interessa, porque é fato conhecido que a história do cristianismo começa com uma criança, a saber, com o nascimento de Jesus. E Jesus abençoou as crianças. Mas quem é considerado criança, na Bíblia? Até quando alguém é criança? Nem todos têm a mesma definição. Para a ONU, criança é quem tem menos de 18 anos de idade. No Brasil, de acordo com o ECA, criança é quem tem menos de 12 anos. E na Bíblia? Que criança o sábio tinha em mente, ao formular o conselho de Provérbios 22.6: “Ensine a criança no caminho em que deve andar”? E que idade tinham as crianças que Jesus abençoou (Mc 10.16)?

 

Palavras para “criança” no Antigo Testamento

Como ocorre em outros idiomas, também em hebraico bíblico existem diferentes palavras para criança. Em alguns casos, a derivação dessas palavras é bem sugestiva. Quando a tradução ao português diz “criança de peito” (como em Sl 8.3 e Is 11.8), em muitos casos o que se traduz é o termo hebraico yoneq, que pode ser usado também para designar um broto ou um renovo (como em Is 53.2). Isso dá a entender que viam a criança que ainda mamava no peito como uma “plantinha”.

Outro termo hebraico para criança é tap, que sugere alguém que dá passinhos rápidos. Seria, neste caso, o termo apropriado para uma criança que começa a andar. A palavra não tem tradução uniforme em nossa Bíblia, podendo ser “criança” (Gn 34.29), “filhinho” (Gn 43.8), “menino” (Jr 40.7).

Uma palavra hebraica com um sentido mais amplo é naar, que existe também na forma feminina de naarah.  Normalmente o termo é traduzido por “jovem”, mas em textos como Êxodo 2.6 precisa ser traduzido por “menino”, pois se refere ao bebê Moisés. Fica a impressão de que a palavra naar (“jovem”) pode ser usada para designar todos os que “não são velhos”. Assim, na conhecida passagem de Provérbios 22.6 (“Ensine a criança no caminho em que deve andar, e ainda quando for velho não se desviará dele”), o termo traduzido por criança é naar.  Se o sentido é “não velho” ou “a pessoa ainda em formação” (como o contraste com “ainda quando for velho” parece sugerir), a passagem bíblica poderia ser traduzida também por “ensine o jovem no caminho em que deve andar”.

A forma feminina dessa palavra (naarah) é usada em 2Reis 5.2, que parece ser o único lugar onde pode ser traduzida por “menina”. Trata-se daquela menina israelita que foi levada como escrava pelo exército sírio e que acabou indicando o profeta Eliseu ao general Naamã (aquele que foi curado da lepra). No entanto, também é possível que aquela menina na realidade fosse uma jovem, pois ela trabalhava para a mulher de Naamã. O texto bíblico, como de costume, não informa a idade.

 

Palavras para “criança” no Novo Testamento

No Novo Testamento, várias palavras gregas são usadas para o período da infância. Uma palavra mais rara, usada apenas oito vezes no Novo Testamento, é bréphos. Costuma ser traduzida por “criança”, mas pode designar um feto (o bebê ainda na barriga da mãe), como em Lucas 1.41, e crianças recém-nascidas, como o menino Jesus, em Lucas 2.12. Quando Pedro compara o povo cristão a “crianças recém-nascidas” (1Pe 2.2), o termo grego usado, com muita propriedade, é bréphos. Quando se diz que Timóteo conhece as sagradas letras “desde a infância” (2Tm 3.15), o termo traduzido por infância é esse mesmo bréphos.

Um pouco mais frequente (24 ocorrências) é o termo grego páis, do qual nos vieram palavras como pedagogia e pedagogo. O termo pode ser usado em referência a crianças de modo geral, de ambos os sexos. Em alguns textos (como Lc 7.7) significa “servo”. É aplicado aos meninos de Belém que foram trucidados por ordem do rei Herodes (Mt 2.16). Esses meninos tinham menos de dois anos de idade. Mas, em Lucas 8.51, o termo páis designa a filha de Jairo, que tinha doze anos. Também Jesus, com doze anos, é chamado de páis, no conhecido episódio em que ele ficou para trás, no Templo, em Jerusalém (Lc 2.43).

Outro termo grego para criança, no Novo Testamento, é paidíon, que aparece mais de 50 vezes. Trata-se de um diminutivo de páis. Assim, alguém poderia insistir que a tradução teria de ser “criancinha”. No entanto, o termo tende a ser usado como simples sinônimo de páis. De modo geral, pode-se dizer que paidíon designa uma criança com menos de sete anos. O Jesus menino que os magos viram com Maria era um paidíon (Mt 2.11). A criança que Jesus colocou no meio dos discípulos em resposta à pergunta sobre quem seria o maior no Reino dos Céus é chamada de paidíon. Por ser um diminutivo, a palavra podia ser usada como termo afetivo. Na Primeira Carta de João, os cristãos são chamados de “filhinhos” (1Jo 2.18).

Há mais um termo grego para criança que merece ser destacado: nêpios, que em vários momentos (Mt 11.25; 21.16) é traduzido por “pequenino”. Pode ter a conotação de imaturo ou inconstante, como em Efésios 4.14, onde se fala sobre ser arrastado pelas ondas e levado por ventos de doutrina. Em 1Coríntios 13.11, Paulo usa o termo grego nêpios, ao falar de sua infância em contraste com sua condição de homem adulto.

 

Crianças nas Cartas de Paulo

O apóstolo Paulo, que era solteiro e não tinha filhos, se dirige a membros de igrejas que ele havia fundado em termos de “filhos” (1Co 4.14; 2 Co 6.13). Em vários momentos, Paulo faz uso do termo criança num sentido figurado e com uma conotação negativa, deixando claro que o alvo do cristão é deixar de ser criança. Em 1Coríntios 3.1, o apóstolo reclama: “Não pude falar a vocês como a pessoas espirituais, e sim como a pessoas carnais, como a crianças em Cristo”. Aqui, o termo grego é nêpios, que poderia ser traduzido por “imaturos”. Em 1Coríntios 14.20 (“irmãos, não sejam meninos no entendimento”), o termo grego usado para meninos é paidíon. Paulo é também o escritor que traz o texto mais antigo (no contexto da Igreja) sobre a educação cristã dos filhos. Em Efésios 6.4, ele se dirige aos pais, dizendo que devem criar os filhos “na disciplina e na admoestação do Senhor”.

 

Jesus e as crianças

Segundo os Evangelhos, Jesus nunca falou de sua própria infância. Também não falou diretamente com crianças. (A exceção poderia ser Lucas 8.54, mas ali ele se dirige a uma menina, a filha de Jairo, que havia morrido.) Em geral, a atitude de Jesus em relação às crianças é positiva, pois elas são apresentadas como modelo (Mt 18.1-4).

Um episódio que não poderia faltar é aquele em que Jesus abençoa as crianças. O relato se encontra em três evangelhos: Mateus 19.13-15; Marcos 10.13-16; Lucas 18.15-17. Que crianças eram aquelas? O texto diz que elas foram trazidas, dando a entender que eram crianças de colo. Será que o termo grego ajuda? Em Mateus e Marcos, a palavra usada é paidíon, o que poderia ser interpretado como “crianças com menos de sete anos”. Já o evangelista Lucas usa o termo bréphos (Lc 18.15), deixando mais claro que eram crianças bem pequenas, crianças de colo. Nossa tradução expressa isso muito bem, ao dizer “pequeninos”.

O relato de Marcos é o mais completo, incluindo o detalhe de que Jesus tomou as crianças nos braços. No entanto, os três evangelistas são unânimes quanto ao detalhe de que Jesus disse que “dos tais é o Reino de Deus”. Isso é bem mais do que dizer (como a NTLH traduz esses textos) que o Reino de Deus é “dos que são como eles”. Jesus disse que o Reino é também das crianças. Como o Reino não pode ser desvinculado do próprio Cristo, o fato de Jesus ter abraçado e abençoado as crianças era a confirmação concreta daquilo que ele expressou com palavras.

 

Conclusão

Na Bíblia, não existe uma “teologia da criança” como tal. Não se fala sobre o “valor” delas, mas as crianças são valorizadas na medida em que Jesus as coloca como modelo de discípulo e na medida em que o Reino de Deus é para elas também. Como disse alguém, “Deus e salvação se encontram apenas ali onde as crianças também podem estar”.

No entanto, as Cartas de Paulo colocam um contraponto. Dirigindo-se a adultos, o apóstolo coloca como ideal o abandono da fase da infância.

Disso se conclui que, como de costume, o contexto de uma afirmação é fundamental. Sob um ponto de vista, numa dimensão mais vertical ou na relação com Deus, precisamos ser crianças até o fim da vida: na simplicidade da fé, na inocência em relação à maldade (1Co 14.20) e assim por diante. Sob outro ponto de vista, na perspectiva da compreensão das coisas de Deus, o desafio é deixar de ser criança e amadurecer!

Nota: Assista a palestra do dr. Vilson Scholz e demais preletores do 16º Fórum de Ciências Bíblicas da Sociedade Bíblica do Brasil, sob o tema - A BÍBLIA E A CRIANÇA aqui.

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Vilson Scholz

Professor de Teologia no Seminário Concórdia vscholz@uol.com.br

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