A criança e o jovem na cidade


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23/09/2020 #Artigos #Editora Concórdia

O que tem preocupado a família e desafiado a Igreja em relação às crianças e jovens na cidade?

A criança e o jovem na cidade

Já vai longe o tempo em que falar de crianças e jovens era algo simples. Aquele tempo em que manuais prometiam sistematizar a lógica da infância e da juventude. Tudo está mais complexo. Em junho, tive a oportunidade de conversar sobre o tema com os participantes do Simpósio Internacional de Missão (CITM), evento realizado a cada dois anos no Seminário Concórdia, em São Leopoldo, RS. O que tem preocupado e desafiado a Igreja em relação às crianças e jovens na cidade?

Uma resposta provável: a vida digital. Os desafios de uma geração que nasceu e está vivendo em um mundo inseguro e individualista, porém tecnologicamente conectado.

A pesquisa TIC Domicílios 2014, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mostrou que 77% da população brasileira entre 10 e 17 anos usa a internet. Outra pesquisa, a TIC Kids Online Brasil 2014, revelou que o acesso à internet por meio de smartphones e tablets vem aumentando vertiginosamente. Em 2013, cerca de 53% das crianças e adolescentes usuários da internet acessaram a rede pelo telefone celular. Em 2014 este número subiu para 82%.

Há cinco anos debatíamos com pais e mães de alunos do Colégio Luterano Concórdia, de São Leopoldo, RS, se era correto dar um celular a uma criança de 11 anos. Poucos davam. Hoje, meu filho, que está no 5° ano, conversa no Whatsapp com os colegas no grupo da turma. Quase todos estão ali. Dias atrás, uma mãe perguntou o que eu pensava sobre sua filha ganhar um tablet. A menina tem 3 anos.

Pode ser difícil sistematizar a infância e a juventude, mas algo tem se tornado uma característica comum. Jovens e crianças estão cada vez mais conectados. E essa conexão modificou a forma como vivem e se relacionam.

É interessante refletir sobre o que causou essa “migração” para a vida digital. Certamente, o avanço tecnológico é uma das causas. Mas não a única. Crianças e jovens não são atraídos pela tecnologia automaticamente. Seu primeiro impulso é interagir com o mundo que os rodeia em todas as suas possibilidades. E aqui encontramos uma questão bastante delicada: Como são os ambientes desse mundo? Que oportunidades as crianças e os jovens encontram para interagir e se relacionar?

A cidade tem parquinho, cinema e outros lugares que são específicos para crianças ou jovens. Mas e a rua que no passado a gente usava para brincar? E os vizinhos com quem conversávamos? O armazém, aonde íamos sozinhos comprar alguma coisa que a mãe pedia? Lembro de pegar o ônibus sozinho, aos sete anos de idade, para ir ao centro da cidade participar do coral do município. Quantas e quão diversas situações faziam parte da vida!

Porém as coisas mudaram muito, em pouco tempo. O trânsito ficou mais intenso. As cidades estão mais violentas, e a sensação de insegurança é bem maior. É cada vez mais difícil contar com a ajuda de vizinhos, que algumas vezes nem conhecemos, de forma que o núcleo familiar ampliado vem se rompendo. Aquele sentimento de que todos são responsáveis por todos tem sido substituído pelo individualismo. A cidade é vista como um terreno de incerteza e insegurança, onde a criança e mesmo o jovem tem cada vez menos autonomia.

E assim, já que negamos a cidade às crianças e jovens, eles garimparam seu espaço e suas relações no mundo virtual e acabaram se apropriando da linguagem digital e da tecnologia de forma mais eficiente que os adultos.

          Tenho um bom exemplo disso na minha própria casa. Desde muito pequeno, meu filho Gabriel teve liberdade para acessar o computador. Enquanto morávamos no Centro Educacional Concórdia, no campus do Seminário, em São Leopoldo, ele tinha todo o espaço para brincar e muitas pessoas com as quais interagir; usar o computador era algo que ele encarava quase como um castigo. Uma última opção. Agora, morando em Novo Hamburgo, RS, num apartamento e adaptado à cautela de uma vida urbana, o uso dos aparelhos eletrônicos tornou-se constante, e tivemos que limitar o acesso em algumas ocasiões.

          Dias atrás visitei um adolescente, meu aluno nas aulas de catecismo, que tem uma postura quieta e tímida. Normalmente, ele chega e vai embora da igreja sem dizer uma só palavra. Quando cheguei à sua casa, ele estava jogando no computador e usava fones de ouvido. Conversava fluentemente com um amigo via internet. Quando acabou a partida, ele me mostrou sua pasta de ilustrações. Eu jamais poderia imaginar que aquele rapaz desenhasse tão bem. Mas não parou por aí. Aos 13 anos, ele mantém uma loja online onde vende seus cartuns e já ganha o seu dinheiro. Quase invisível na cidade, quase invisível na igreja, mas um protagonista no mundo virtual. Lá ele encontrou as possibilidades de interação que jamais encontraria no “mundo real”.

De fato, a forma como as crianças e os jovens se socializam mudou. Eles estão cercados de pessoas. Possuem centenas de amigos no Facebook. Participam e interagem em diversos grupos no Whatsapp. Com um clique fazem amigos. Com um clique desfazem uma amizade, saem do grupo, excluem um contato. Interações vêm e vão sem culpa ou cerimônia. Tudo é rápido e indolor. Certamente esse dinamismo nos incomoda. Como cristãos, acreditamos no que permanece. Cremos em Jesus como aquele que é o mesmo ontem, hoje e sempre. Um Deus que não muda e nem varia (Tiago 1.17).

Existem algumas consequências da era digital que são verdadeiros desafios para a Igreja de Cristo. E certamente uma das que mais tememos é a diminuição do contato humano, olho no olho. Às vezes ouvimos falar dos tempos em que a Escola Dominical reunia mais de 50 crianças. As reuniões da juventude eram lotadas, e os cultos, bem frequentados. Hoje, salvo exceções, o que se nota é a ausência das crianças e dos jovens nos encontros da igreja. E não só na igreja! Sociedades, clubes e centros de tradição já não são prioridade.

Além disso, a noção de comprometimento também mudou. Crianças e especialmente jovens do passado comprometiam-se com as mais diversas causas e eram fiéis a elas. Hoje, o comprometimento tende a durar apenas enquanto duram os frágeis laços do interesse. Nos relacionamentos, essa dificuldade também aparece. Há jovens que numa única noite namoram mais pessoas do que seus pais namoraram durante toda a vida. Em um mundo onde tudo muda constantemente, a relação humana tem se tornado descartável. O outro é visto como um meio e é desumanizado.

Crianças e jovens sentem na pele essa desumanização. E por duvidarem de si mesmos contraíram uma necessidade incessante de serem vistos. A famosa prova da existência, de Descartes, “Penso, logo existo”, tem sido substituída por sua versão atualizada: “Sou visto, logo existo”. Se as pessoas podem me ver, é prova de que estou aqui (Sygmunt Bauman).

Tudo isso mostra que, ao mesmo tempo em que as crianças e jovens conquistaram com naturalidade o mundo digital, o sofrimento, a angústia, a busca e a inquietação estão cada vez mais presentes em suas vidas. E se manifestam de várias formas: na dificuldade de relacionamento e de aceitação da autoridade dos pais, na depressão, na superficialidade e no afastamento da igreja e mesmo da fé.

Como Igreja, precisamos fazer frente a estes desafios. Negar o ambiente digital ou se afastar dele, assumindo o papel de monges eremitas da atualidade, não ajudará. Temos a convicção de que a mensagem salvadora do Evangelho sempre foi e sempre será o conteúdo mais relevante de todos e deve ser comunicado apropriadamente.

Não podemos fechar a igreja às crianças e jovens, da mesma forma que a cidade foi fechada para eles. Ao contrário, devem ter espaço no culto, nos projetos e nas ações da comunidade. O templo precisa ser apresentado como a casa do Pai, onde eles não serão encarados como gente que atrapalha, mas como filhos de Deus integrados à família da fé. É claro que isso nem sempre é fácil. Precisamos vencer velhos preconceitos e praticar mútua tolerância. Saber relevar, por exemplo, a dificuldade de uma criança de permanecer quieta no culto, ou o som da bateria que eventualmente está mais alto do que você gostaria.

Se por um lado não devemos fechar a igreja, por outro, podemos ajudar a vencer o bloqueio na cidade! Jovens gostam de ser desafiados e desejam vivenciar sua fé na cidade. Há alguns anos, os jovens de Novo Hamburgo caminham até as sinaleiras mais movimentadas da cidade no sábado de aleluia e passam algum tempo desejando Feliz Páscoa para as pessoas. E vibram em fazer isso! Recentemente um jovem ficou comovido ao passar por um morador de rua numa noite fria. Sem criar uma comissão ou formar uma diretoria, um grupo foi mobilizado, doações arrecadadas e saímos, na madrugada perigosa, conquistar a cidade e aquecer com alimento e oração pessoas que sofrem de frio e de solidão. Jovens querem conversar sobre como podem melhor testemunhar sua fé na escola, faculdade ou trabalho e precisam ter espaço na igreja para esse debate.

Outra questão que precisamos lembrar é que estamos vivendo uma época de intensa crítica às estruturas. A organização que as gerações passadas viam como uma bênção agora é criticada. Gastamos muito tempo, energia e recursos mantendo a estrutura e muitas vezes a mensagem graciosa do Evangelho fica obscurecida por cobranças e ameaças, dizem. É importante ouvir essa crítica e encontrar um meio termo, adequando a estrutura quando necessário.

Pelo ensino do Evangelho, pela prática da absolvição e pelo uso dos sacramentos, nossas comunidades são ambientes de graça, e precisamos zelar para que ela seja espalhada com todo o seu perfume. As crianças e os jovens precisam conhecer a Igreja muito mais como um ambiente de graça do que como uma polícia moral. Infelizmente, todos os dias jovens cristãos ouvem nas escolas, no trabalho e nas faculdades que a Igreja não passa de uma agência conservadora que age para impedir o progresso da sociedade. A Igreja que vive e demonstra a graça é uma Igreja muito mais relevante para jovens e crianças do que aquela que funciona em busca de poder e recursos para sua própria manutenção.

Da mesma forma, a resposta da Igreja aos desafios da era digital e do alegado desinteresse dos jovens e crianças pelas coisas de Deus passa pela família. Assim como a cidade, a Igreja também tem os seus códigos sociais que a organizam. Ao iniciar o culto, o pastor lembra que estamos no “5° Domingo após Pentecostes”. Ora, o que é Pentecostes e por que, afinal, estamos no 5° Domingo? A Igreja usa uma linguagem que precisa ser ensinada. Ou não será aprendida! É no dia a dia, repetindo, incluindo a linguagem da fé nas interações, que a criança vai compreendendo os significados e os relacionando com sua vida. O ambiente do lar não deve ser algo desconectado da igreja, mas uma extensão dela.       

Quando Lutero explicou o Batismo, lembrou que ele é revivido diariamente quando o velho homem é afogado e morre com todos os seus maus desejos e o novo homem ressurge para viver em justiça e pureza diante de Deus. Essa dinâmica do Batismo não é limitada a tempos ou lugares, mas aplica-se também às interações do mundo virtual. Os que o frequentam necessitam igualmente de perdão, vida e salvação.

Finalmente, devemos lembrar que mesmo uma infância líquida, uma juventude líquida e uma cidade líquida precisam de uma base sólida. E essa base é Cristo, a rocha firme e inabalável que, pelo Batismo, reveste crianças, jovens e adultos com suas qualidades, e, por causa da sua obra eterna, continua estendendo a eles a sua graça que é dinâmica e eficaz em qualquer cultura e qualquer situação.

 

Fernando Ellwanger Garske

Pastor da IELB em Novo Hamburgo, RS

pastorfernando@gmail.com

*Texto publicado no Mensageiro Luterano de setembro de 2016.

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