Vocação


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17/09/2020 #Estudos #Editora Concórdia

Um chamado à fé e à vida cristã

Vocação

“Cada um permaneça na vocação em que foi chamado” (1Co 7.20).

Texto-base e contexto: 1Coríntios 7.14-21

 

A importância da carta aos Coríntios no cânone eclesiástico pode ser resumida na frase: fé ativa no amor. A partir do capítulo 13, podemos analisar a construção do texto como uma carta que estabelece a teologia a partir da cruz como centro da revelação de Deus e temas que dela emanam.

 

“Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus” (1Co 1.18).

          E ela não é nova. Essa teologia está centrada na revelação do AT:

“Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos instruídos. Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria do mundo?” (1Co 1.19-20).

 

A loucura da salvação

A salvação é alcançada ao ser humano na “loucura” e na “fraqueza” da cruz

 

“Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Co 1.25).

E é essa fé que resulta na Igreja: a fé no Cristo que morreu por causa dos pecados e ressuscitou para ser nossa justiça, e que restaura ao seu redor a unidade da Igreja através do amor que leva ao irmão, pelo qual Cristo também morreu!

Mas contra essa teologia, havia uma “teologia” estranha em meio à igreja de Corinto. Havia um grupo de membros que vivia uma teologia baseada no “espírito do mundo” (2.12), o que os tornava carnais e fazia com que andassem segundo o homem (3.3), levando ao ciúme, às contendas (3.13) e à confusão (14.33); consequentemente, não andavam a partir do Espírito, porque o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus (2.14).

 

A teologia da glória

A teologia da glória na igreja de Corinto é fruto de seu contexto

 

Moralidade era um grande problema. Já antes de Cristo, a cidade era conhecida como a cidade da fornicação. Viver como um coríntio era ser fornicador (Aristófanes cunhou esse verbo entre 450 e 385 a.C.).

Pluralismo religioso seguia o catálogo grego e romano. A promiscuidade religiosa tornou difícil para muita gente entender a fé cristã.

           A filosofia também influenciava muito a vida da igreja. Epicurismo estimulava o prazer e a tranquilidade, condenando a ideia da dor, da paixão, da superstição e do medo da morte. Um certo autocontrole. Os estoicos ensinavam a liberdade e a autonomia do ser humano através de uma vida racional em concordância com a natureza e o universo. A frase que Paulo usou para classificar os estoicos é “tudo é possível para mim” (6.12): “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1Co 6.12), afirmavam os estoicos.

Da alta sociedade. Quando Paulo reclamou de que os Coríntios não o ajudaram financeiramente (capítulo 4), é bem possível que muitos membros da igreja de Corinto estivessem investindo com os sofistas, pois estes preparavam jovens para a vida adulta, cobrando caro pelos seus serviços.

Esses e outros elementos contextuais e culturais tornaram a igreja de Corinto uma igreja com uma espiritualidade estranha à fé cristã. Contrário a esse espírito do homem natural, o Espírito de Deus proporciona graça e paz (1.3); dá os dons espirituais do Evangelho, através do Batismo e da Santa Ceia, e, através desses dons, o Espírito de Deus constrói a comunhão da Igreja, que é caracterizada pelo amor que tudo suporta [12.17], pela paz e pela boa ordem [12.27].

Em resumo, dos argumentos de Paulo em sua carta aos Coríntios, vemos a teologia da cruz como fundamento para:

              - a unidade da igreja

              - a santidade da igreja

              - a liberdade da igreja

              - o culto da igreja

              - a esperança da igreja.

 

A vida em santidade

No contexto da santidade está inserido o texto de 1Coríntios 7

A parte que trata da santidade da Igreja começa com uma situação bem emblemática no argumento de Paulo. O apóstolo trata, no capítulo 5, de um caso de incesto em meio à igreja de Corinto.

O capítulo 7 descreve temas ligados ao matrimônio. Se a santidade do cristão ocorre no seu corpo, ela começa com uma dádiva. O fato de sermos cristãos não implode nossa condição anterior.

A santidade no corpo tem uma razão: “Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo” (1Co 6.20).

Paulo diz isso no versículo 7: “Quero que todos os homens sejam tais como também eu sou; no entanto, cada um tem de Deus o seu próprio dom; um, na verdade, de um modo; outro, de outro” (1Co 7.7).

Em termos antropológicos, ser homem ou mulher, solteiro ou casado, circunciso ou incircunciso, escravo ou livre, rico ou pobre, a santidade de Deus não prescreve mudanças. Pelo contrário. O Evangelho não dá o direito a que assumamos uma atitude de superioridade em função das ordens naturais. Paulo está dizendo que ninguém pode reclamar para si uma superioridade na igreja só porque tem um status social mais elevado.

Na Igreja do Novo Testamento, muitos escravos deram ouvidos ao Evangelho; consequentemente, foram chamados para a vida eterna também. À luz da eternidade, esses escravos compartilhavam a mesma dignidade em Cristo do que os não escravos. 

Esse aspecto antropológico condena a teologia da glória que defende a prosperidade, por sermos cristãos, como sinal do chamado e da bênção de Deus.

Em suma, o Evangelho cria a santidade em meio a todas as classes sociais e, em todas, condições nas quais as pessoas vivem ou caminham como literalmente afirma o apóstolo Paulo. Em meio a todas essas situações, o cristão pode ter boa consciência, sabendo que está servindo ao seu Senhor, diz Paulo no versículo 17.

 

Como entendemos o que está escrito no versículo19: “... mas o que vale é guardar as ordenanças de Deus”?

Vejo aqui um aspecto teológico presente no texto e leio o que Paulo escreveu à luz de 1João 3.23. As ordenanças nada mais são do que a revelação de Deus em Lei e Evangelho, ou nas duas justiças, como diz Lutero.

Escreve João:

Ora, o seu mandamento é este: que creiamos em o nome de seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o mandamento que nos ordenou. E aquele que guarda os seus mandamentos permanece em Deus, e Deus, nele. E nisto conhecemos que ele permanece em nós, pelo Espírito que nos deu” (1Jo 3.23-24).

Assim como João, Paulo está descrevendo o mandamento divino, a obediência da fé, a parte principal de toda a teologia. Em outras palavras, ao descrever a vocação não se pode esquecer qual é o centro do nosso chamado. A nossa vocação está centrada na vocação de Jesus Cristo, que passivamente assumiu o nosso lugar diante de Deus. Nós é que reconhecemos a vocação de Jesus a partir do reconhecimento de nosso pecado e da confissão de nossa fé nele.

 

Fé e obras

A fé nunca está sozinha. Ela sempre é acompanhada ou seguida por obras

 

As obras não acontecem em um campo de ação previamente descrito. A Igreja, que é gerada pela ação do Espírito Santo, não tem limite de ação. Paulo chama a nossa atenção de que a performance de nosso chamado pode ocorrer lá onde estamos. Livres do pecado através da fé em Jesus Cristo, Paulo encoraja os cristãos, especialmente os escravos, a viver sua liberdade da escravidão do pecado em meio ao mundo de sua época. O senhorio de Jesus aparece na vida cristã através das ordens da criação. Os escravos têm agora um outro Senhor, o Senhor dos Céus, que através de sua vida e sangue maravilhosamente nos libertou para servirmos ao próximo em amor.

Ao estimular os cristãos a viverem sua fé ali onde estão, Paulo o faz através da parênese (exortação) que impulsiona ética e missiologicamente os cristãos a viver no mundo, mesmo não sendo dele. Só os cristãos conhecem a santa e perfeita vontade de Deus, e é vontade de Deus que todo o mundo seja salvo. Neste aspecto, Paulo afirma que, ao ouvirmos a Palavra de Deus em meio ao deserto da vida, testemunhamos de nossa fé, que se torna uma ação missionária. Ao darmos ouvidos à Palavra de Deus, estamos envolvidos na perspectiva proclamatória da sua Palavra. Amor e testemunho marcam a nossa vida. Ética e missão se aproximam, afirma Paulo.

 

Sob a teologia da cruz

Somos um gigante, não adormecido, mas que repousa na fé!

 

Luteranos: um gigante adormecido, dizem alguns! Talvez não! Por mais que sejamos um grupo social com características sociais, temos uma grande prioridade como Igreja no Brasil.

Os cristãos luteranos não se preocupam apenas com os sintomas da doença do mundo. Sob a teologia da cruz, os luteranos conhecem e condenam a raiz do pecado do mundo: o completo afastamento de Deus.

Queremos que a espiritualidade da cruz vença em meio à teologia da glória. Por isso, mesmo que pareçamos quietos e que estejamos no nosso canto, estamos crendo e não dormindo! Estamos deixando nas mãos de Deus a nossa história e a história das pessoas que estão ao nosso lado.

           

Contrário à espiritualidade da glória, a nossa vida sob a cruz é a forma oculta de Deus continuar sua obra entre nós. E essa ocultação de Deus ocorre:

 

 

1.     Um voltar diário à fonte batismal. Nunca um progresso, mas uma volta. O retorno ao Batismo, onde morremos em Cristo, na água, e ressurgimos das águas para uma nova vida! Nossos pecados, nossa vergonha, nossa culpa são banhados pela santidade de Cristo.

 

2.     Uma batalha que nos envolve, porque assim como Cristo luta contra Satanás, nós temos uma “guerra civil” dentro de nós, quando o Espírito Santo luta contra a nossa velha natureza pecaminosa. A vida, muitas vezes, parece um deserto quando Satanás quer nos afastar de Cristo. Por isso, a nossa vigilância está na Palavra e na oração, onde encontramos consolo e paz em Cristo para continuarmos a viver.

 

3.    A vocação. Precisamos aprender a descansar nela! Depositar nossa vida nela! Mesmo vivendo em meio às tentações, a vocação é o nosso oásis no meio do deserto. Na vocação, temos o culto e a ação de graças de forma concreta, uma vida onde nos tornamos servos de muitos, um sacrifício vivo sob nosso Senhor Jesus Cristo. Assim como confirmamos a vocação de Jesus na nossa confissão de fé e no nosso culto, da mesma forma o próximo confirma a nossa identidade cristã quando o servimos em amor. O aroma da nossa fé transparece nas obras e no nosso testemunho, e o espalhamos pelo mundo ao nosso redor. Na nossa vocação, de forma visível e concreta, nós damos graças e expressamos nossa gratidão pelos pecados perdoados diariamente e pela vitória em meio à luta causada pelo velho homem, a nossa inclinação natural para o mal.

 

Quando olhamos para a vida cristã sob a perspectiva funcionalista ou materialista, a teologia da glória aparece, porque ela quer resultados. A vida se torna um fim em si mesmo. Lutamos por números e esquecemos que já temos tudo nas nossas mãos. Não buscamos resultados! Vivemos do maior resultado que podemos ter na vida!

Para nós, luteranos, a fé engloba toda nossa vida, é ela que nos santifica e contorna a nossa vida, tornando-a santa. Isso é a marca luterana que testemunha da bondade e da graça de Deus. Esse aparente stand by leva muitos a acreditaram que estamos fora da tomada...

Vivemos das coisas já criadas, contrários à ideia de criar e trazer o céu para a terra.

          É teologia da vida normal, ordinária. Não precisamos de chamados extraordinários para estarmos envolvidos na missão de Deus.

Nesse mundo criado por Deus, que para muitos pode ser bem mundano, é que Deus se revela Santo e utiliza a nossa santidade. Esse é o maior chamado, que é extraordinário e nos coloca na realidade concreta do mundo, objeto do amor de Deus.

          Somos a luva que está nas mãos de Deus, e ele continua a fazer a sua obra acontecer (Deus oculto, que se esconde atrás de nossas vocações).

          Nossas ações éticas, administrativas e de planejamento não ocorrem no escuro ou na incerteza do futuro. Elas são baseadas naquilo que Deus já colocou em nossas mãos. Não precisamos buscá-las. Basta vivermos a fé de forma ativa no amor.

Pastor dr. Clóvis Jair Prunzel

Professor de Teologia Sistemática

cjprunzel@gmail.com

 

*Texto publicado no Mensageiro Luterano de setembro de 2014.

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