Estou na faculdade, ou já sou profissional, e não
tenho mais tempo.
Além disso, creio que estudei o suficiente nas aulas
de Catecismo para a minha Confirmação.
Se você chegou à universidade, então você ainda
pertence a um grupo relativamente pequeno no Brasil. Embora, nas últimas
décadas, o Brasil tenha feito grande esforço para diminuir a defasagem com
outros países desenvolvidos e em desenvolvimento quanto ao percentual da
população com nível superior de educação. Na primeira
década deste século, o percentual de brasileiros com diploma universitário
praticamente dobrou, e este percentual continua aumentando a cada ano. Hoje,
a população de estudantes acadêmicos chega a 6,7 milhões e está crescendo de 7%
a 10% ao ano. Ao final da graduação, você terá investido pelo menos 18 anos de
estudo no seu aprimoramento intelectual. Este investimento não é só de tempo
seu, mas requer dons e talentos, uma rede de suporte de família e amigos, uma
infraestrutura de educação, tanto pública como privada. Estas dádivas, que
independem de você, equivalem a um grande investimento nos seus talentos e
geram responsabilidade. Se você chegou ao nível superior de estudo, significa
que você está administrando bem estas dádivas de Deus, pelo menos com relação
ao desenvolvimento intelectual e à sabedoria humana. Agora vem a
pergunta-chave:
Você está
administrando bem os seus dons espirituais?
Em
outras palavras, o seu crescimento
espiritual tem acompanhado o crescimento intelectual? Você tem crescido tanto
no conhecimento da Palavra e da vontade de Deus quanto na sabedoria dos homens?
Ou você estacionou no estudo do Catecismo Menor, que foi exigido para a Confirmação, e nunca mais alimentou a sua fé
com mais do que o alimento básico do sermão dominical?
Isso
significaria que você parou o seu aprendizado da Palavra no nível primário,
enquanto investia todos os seus recursos desenvolvendo-se intelectualmente até
o nível superior. O autor da Carta aos Hebreus expressa indignação, quando diz
que os seus leitores estão preguiçosos ou atrasados no estudo da Palavra.
Considerando por quanto tempo eles já eram cristãos, eles deveriam ser mestres
na Palavra, mas ainda precisavam ser relembrados dos princípios elementares da
doutrina. Como bebês, eles ainda não eram capazes de digerir alimento
espiritual sólido (Hb 5.11ss). Considerando que esta carta foi escrita nos
primórdios da igreja, você provavelmente é cristão por mais tempo do que eles
eram. No Prefácio ao Catecismo Maior,
Lutero, em seu estilo típico, não poupa crítica àqueles que se sentem eruditos
o suficiente, que não necessitam mais rever e estudar a doutrina. Afinal, já
estudaram uma vez e se sentem mestres, ou nas palavras do reformador, “com uma
leiturinha querem de plano ser doutores [...], já saber tudo e de nada mais
precisar”. Agora você pode me perguntar:
Mas afinal, para
quê se aprofundar na doutrina?
Uma fé simples
como a de uma criança já não salva?
É
bem verdade que Deus não exige um certo nível de maturidade espiritual para a
salvação. Jesus é bem claro quando diz “quem crê tem a vida eterna” (Jo 6.47) e
“da boca de pequeninos e de criancinhas de peito tiraste perfeito louvor” (Mt
21.16). Porém, como intelectual de nível superior, você tem responsabilidades
e está exposto a riscos que são distintos do restante do povo de Deus.
Responsabilidade
do conhecimento
Estou
me referindo à responsabilidade de “provar os espíritos”, para saber se procedem
de Deus (1Jo 4.1). Ainda que esta responsabilidade seja de todos cristãos
adultos, os muitos anos de ensino que você completou significam que você é
chamada(o) a distinguir a doutrina a um nível de profundidade equivalente.
Por
exemplo, os cristãos da sinagoga de Beréia conferiram nas Escrituras para ver
se o que Paulo e Silas estavam lhes apresentando era de fato assim. A história
da reforma luterana é repleta de exemplos de como não somente pastores, mas
também leigos, precisaram distinguir entre duas ou mais doutrinas aparentemente
corretas. Optar por um dos vários ensinos sobre o livre arbítrio, a Santa Ceia,
a natureza da pessoa de Cristo e sobre a presciência e eleição de Deus podia
ter graves consequências. Cidades inteiras estavam divididas entre católicos,
calvinistas, entusiastas e luteranos, aparentemente todos cristãos, todos
citando a Bíblia com mestria para justificar seus ensinos. Mas a inevitável
decisão podia significar ao pai de família a perda do emprego, da casa e dos
bens. O que você faria nessa situação? Eu recomendo a leitura do livro Cremos,
por isso também falamos, Editora Concórdia, em que o professor Otto Goerl
descreve as circunstâncias históricas que levaram à Fórmula de Concórdia. Imagine-se vivendo naquele tempo. Muitas das controvérsias
tratadas nesta última confissão do Livro
de Concórdia podem lhe parecer confusas se você negligenciou seu
crescimento espiritual, enquanto nutria e cultivava sua formação intelectual.
E não se iluda, pensando que as
controvérsias doutrinárias foram resolvidas há 500 anos. Hoje em dia, você é
chamado a se posicionar com relação a diversas questões controversas, para as
quais você não vai encontrar um artigo, que resolva o assunto, nas clássicas
confissões luteranas. Digamos que na sua comunidade, uma garota deseja ir ao
Seminário e se tornar pastora. Porque ela não poderia, se, por exemplo, ela
entende mais da Bíblia do que a maioria dos meninos? Outras igrejas, até de
denominação luterana, não veem nenhum problema com isso. Na verdade, comunidades
e igrejas (ou sínodos) têm se dividido por conta desta controvérsia. Outro tema
bem polêmico na cristandade de hoje é o da sexualidade. Desde a liberdade
heterossexual até a relação homossexual comprometida e estável há uma gama de
tópicos, com os quais os reformadores nem sonhavam que a igreja teria de
defrontar-se um dia. Qual é a vontade de
Deus a respeito destes assuntos, dentro da visão bíblica e teológica da nossa
Igreja?
Vemos comunidades e igrejas em muitos
países se debatendo com relação a estes assuntos. Alguns cristãos simplesmente
seguem o ensino do seu pastor ou guia espiritual, o qual Deus lhes deu para
este fim, e fazem bem. Mas você estuda e lê jornais, revistas, blogs e
participa de debates na sua comunidade local e em comunidades virtuais na
Internet. Os argumentos de todos os lados
parecem fazer sentido, mas qual é mesmo a vontade de Deus? Só um dos lados
pode estar certo, e ficar indiferente não é uma opção. O simples fato de termos
avançado nos estudos seculares nos faz ver estas mesmas questões de forma bem
mais complexa. Exatamente por esta razão
precisamos alimentar a nossa fé com alimento sólido, isto é, com literatura e
estudo mais aprofundado da doutrina bíblica.
Responsabilidade
do testemunho
Como
filhos amados de Deus, a tarefa que ele nos deu é a de anunciar o Evangelho no
meio em que vivemos. Quanto a isso, Pedro nos lembra: “devemos estar sempre
preparados para responder a todo aquele que nos pedir razão da esperança que
está em nós” (1Pe 3.15). Você está
preparado? No meio acadêmico e, mais
tarde, no dia a dia da profissão, lidamos com colegas que são convictos ateus,
espíritas, budistas, muçulmanos, entre outros. Se tentarmos testemunhar a eles
sem a firmeza do conhecimento aprofundado na doutrina, não faremos jus ao tesouro
que nos foi dado. Lembro-me de uma viagem de ônibus interestadual, em que
sentei ao lado de outro engenheiro. Ele me contou que era espírita, e passamos
a viagem toda conversando sobre a fé de cada um. Ao final da viagem, eu me
senti como quem perde por goleada. Cada preconceito malformado que eu tinha
sobre o Kardecismo, ele corrigia, e parecia fazer sentido. Cada argumento
bíblico que eu levantava, ele contrapunha com uma interpretação kardecista, que
eu sabia estar errada, mas que eu não sabia como explicar biblicamente e
teologicamente. Naquela viagem, acho que dei um “tristemunho”. Mas Deus, em sua
misericórdia, usou aquela ocasião para combater a minha soberba e para me fazer
estudar aspectos da doutrina que eu nunca tinha aprofundado antes. Preciso clarificar aqui que não estou me
referindo à eficácia da Palavra. Jamais devemos deixar de testemunhar por não
nos sentirmos preparados (uma tentação comum do diabo). A eficácia da semeadura
não depende do semeador, mas do Espírito de Deus, que dá o crescimento (Is
51.11). Mas se você já recebeu a pergunta de colegas, se é cristão luterano só
porque seus pais criaram você assim, então você sabe do que estou falando. Se
você responde que não, então precisa conseguir explicar por que você é cristão
luterano, de forma que seu colega entenda.
Riscos e desafios
no testemunhar a fé
Em
seus estudos universitários, você é confrontado com ideias e conceitos
científicos, políticos, éticos e morais. Pela própria natureza do meio
acadêmico, estes conceitos são solidamente elaborados e já passaram pelo
escrutínio de pensadores muito inteligentes.
Qual é a sua atitude diante de conceitos que entram em choque com a doutrina
bíblica? Será que você vai ficar calado e omisso? Mais importante ainda, será
que você conhece bem a doutrina bíblica a respeito do assunto? Ou será que você
vai ser seduzido pelo poder de persuasão da teoria humana e permitir que ela
abale os fundamentos da revelação do Criador? Lembre-se
de que os mesmos colegas que se dispõe a ouvir o seu testemunho, também querem
convencê-lo de que a fé deles está certa. Você vai ser acusado de ter uma fé
cega, irracional. Somente com o estudo da Palavra você vai conseguir combater
sofismas, reconhecer os limites da lógica e usar sua inteligência em obediência
a Cristo (2Co 10.4,5). O risco de uma fé malnutrida ser tragada pelo culto à
razão humana, prevalente no meio acadêmico, é bem real. Basta ver quantos
jovens universitários de nossas comunidades se afastam da fé e da igreja. Outra
advertência de Pedro se aplica aqui. Ele avisa aos irmãos, que se “guardem de
serem levados pelo engano de homens perversos, ficando vocês mesmos também
abalados na sua firmeza”. E completa com a única defesa eficaz contra este
risco: “mas cresçam antes na graça e no
conhecimento de nosso Senhor e salvador Jesus Cristo” (2Pe 3.17,18).
Depois
da formatura, você sabe distinguir qual a
vontade de Deus em cada situação, como profissional? Que princípios éticos se
aplicam em cada caso? Para uma criança, o mundo é eticamente preto e
branco. Tem mocinho e tem bandido, e ninguém no meio. Quanto mais você estuda, mais percebe todos os tons de cinza e que a
realidade é bem mais complicada. Sem o estudo diligente da Palavra, você se
torna solo fértil para o tentador convencê-lo de que o errado não é tão errado
assim. Por isso, somos advertidos para sermos sábios e astutos com relação à
ética e ao juízo, ao mesmo tempo em que permanecemos inocentes e simples com
relação à malícia (Mt 10.16, 1Co 14.20).
Estes
exemplos de responsabilidades e riscos, particulares àqueles que avançam nos
estudos, levam-nos à conclusão de que o
estudo da Palavra é importante em muitas situações, para muitos fins. Só que
esta conclusão está incompleta. A verdadeira extensão da importância do estudo
da Palavra de Deus é ainda maior. Jesus lhe dá a dimensão correta, quando diz a
Marta que uma coisa apenas é necessária: ouvir e guardar os seus
ensinamentos, como fazia Maria. Esta verdade é difícil de entender. Só uma
coisa é necessária? Mas... e o resto? Só pela fé podemos confiar na promessa
maravilhosa que Deus faz a respeito do tempo que dedicamos a ele: “busquem em
primeiro lugar o seu reino e a sua justiça e todas as demais coisas serão
acrescentadas”(Mt 6:33). Precisamos aprender com o salmista, que canta no Salmo
119.47, 97, 98: “Terei prazer nos teus mandamentos, os quais eu amo. [...] Quanto
amo a tua lei! É a minha meditação todo dia. Os teus mandamentos me fazem mais
sábio que os meus inimigos, porque aqueles eu os tenho sempre comigo. Compreendo mais do que todos os mestres,
porque medito nos teus testemunhos”.
Mas... não tenho
tempo para nada!
Agora
você pode estar pensando: é fácil falar disso e concordo com tudo, mas é difícil
fazer. Com a correria dos nossos dias, com as dificuldades do meu curso, não
tenho tempo para nada! Pode acreditar que eu sinto a mesma coisa.
Na
administração do nosso tempo, às vezes, temos medo de tirar o tempo do estudo ou
do trabalho para estudar a Palavra de Deus. Mas precisamos nos lembrar que a
promessa que Deus fez através do profeta Malaquias também vale para a nossa
oferta de tempo: “Tragam os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento
na minha casa, e me provem nisto, diz o Senhor dos Exércitos, se eu não abrir
as janelas do céu para vocês, e não derramar sobre vocês bênçãos sem medida” (Ml 3.10). Por isso, não há o que temer ao
tirarmos tempo para Deus.
Na
verdade, todos nós temos dificuldades de tempo e de motivação para estudar a Palavra
de Deus. Por isso, ficam aqui duas dicas para enfrentar o problema:
- Leia todos os dias. O mundo à
nossa volta nunca para de plantar ervas daninhas em nosso coração. A Palavra
de Deus, no entanto, limpa o nosso coração. Quando cessamos o contato
frequente com a Palavra, corremos o risco de sufocarmos nossa fé com as
ideias do mundo. Faça um programa de leitura e dedique um tempo todos os
dias para estudar, nem que seja um pouco. Além da Bíblia, leia e estude
também as confissões e livros que seu próprio pastor recomendar.
- Aproveite todas as oportunidades e desafios, que
ocorrem de tempos em tempos, para aprofundar-se sobre um tema. Um novo
livro que tenha sido recomendado, um estudo bíblico ou retiro espiritual,
uma devoção ou uma aula preparada, um debate polêmico no Facebook, um
testemunho difícil a um colega bem preparado de outra religião, etc. Não
devemos nos encolher diante das oportunidades que Deus nos dá. É no fogo
que se forja o aço.
Em
resumo, Deus nos diz: “Não cessa de
falar deste livro da lei; antes medite nele dia e noite, para que tenha cuidado
de fazer segundo a tudo quanto nele está escrito; então você fará prosperar o
seu caminho e vai ser bem sucedido. Não fui eu que mandei você? Seja forte e
corajoso; não tenha medo, nem se espante, porque o Senhor Deus está com você,
por onde quer que ande” (Js 1.8-9).
Carlos F. Lange,
engenheiro e
professor, mora em Alberta, Canadá
*(Publicado no ML de julho/2013)