No mês em que a Sociedade Bíblica do
Brasil completa 72 anos (foi fundada no dia 10 de julho de 1948, no Rio de
Janeiro), seria possível falar sobre a Sociedade Bíblica e sua importante
missão no Brasil e no mundo. No entanto, escolhi um caminho um pouco diferente,
para falar da Bíblia, que é a razão de existir da Sociedade Bíblica. Seria
possível apresentar as informações de forma direta, mas, numa tentativa de
deixar isso um pouco mais interessante, optei por uma entrevista imaginária com
a Bíblia. (Afinal, há vários momentos, dentro da Bíblia, em que se afirma que
“a Escritura diz”, isto é, fala.) A entrevista é imaginária, mas as respostas
são sérias e as informações condizem com a verdade.
Repórter (R): E então, Bíblia,
setenta e dois anos de história no Brasil? Como se sente?
Bíblia:
Na verdade, quem está chegando na “idade bíblica” (70 ou 80 anos, como diz o
Salmo 90) é a Sociedade Bíblica do Brasil. Eu estou no Brasil, em língua
portuguesa, há muito mais tempo. Pelo menos desde os idos de 1809. Antes da Sociedade
Bíblica do Brasil, quem me tornou conhecida no Brasil foram as Sociedades Bíblicas
da Inglaterra e dos Estados Unidos. Em 1948, com a fundação da Sociedade
Bíblica do Brasil, fui entregue ao cuidado direto de líderes das igrejas do
Brasil.
R: Significa que
você está em língua portuguesa desde 1809?
Bíblia: Não, também não é bem assim. Estou
em língua portuguesa faz uns 339 anos. Em 1681, o pastor João Ferreira Annes de
Almeida publicou a tradução de uma primeira parte, a saber, o Novo Testamento. Almeida
vivia bem longe do Brasil e também de Portugal, num pequeno lugar chamado
Batávia, na ilha de Java, que hoje faz parte da Indonésia. Como eu sou um livro
grande, ele não conseguiu terminar a tradução da segunda parte (o Antigo
Testamento). Faleceu antes disso, em 1691. Um colega de Almeida, Jacobus op den
Akker, traduziu a parte que vai do final de Ezequiel a Malaquias. E eu apareci
numa edição completa, em português, lá por 1750.
R: E desde quando
você tem esse nome de “Bíblia”? É verdade que o seu nome significa “livro de
Deus”?
Bíblia: Hoje, meu nome completo é “Bíblia
Sagrada”. Em português, sou chamada assim desde que apareci como livro de um só
volume, em 1819. Mas esse nome de “Bíblia” é como um apelido que os outros me
deram. Eu mesmo não me chamo de Bíblia, mas não vejo problema no fato de me
chamarem assim. Eu gosto de me chamar de “Escritura”, “Sagradas Escrituras”,
“Palavra”. E a primeira parte, também conhecida como Antigo Testamento, pode
ser chamada de “Lei, Profetas e Salmos”. Como não sou um livro só, mas um
conjunto de livros, aos poucos os cristãos começaram a me chamar de “Bíblia”, que
é uma palavra que significa “livros”. Sou, sim, o livro de Deus, mas Bíblia
significa “livros”, e não livro.
R: Isso significa
que só você tem esse nome...
Bíblia: Na verdade, não é bem assim. Você
sabe que, quando alguém fica famoso, o nome começa a ser copiado. Assim, o nome
“bíblia” é dado também a livros que as pessoas pensam que têm autoridade num
assunto e que são consultados com frequência. Existe, por exemplo, uma “Bíblia
do Vendedor”.
R: Isso não deixa
você aborrecida?
Bíblia: Eu poderia até
ficar chateada com isso, mas fazer o quê? E, quando as pessoas citam essas
outras “bíblias”, cedo ou tarde alguém se lembra de mim, a Bíblia Sagrada. Eu
sou o livro com verdadeira autoridade. E, quando o assunto é consultar com
frequência, nenhum outro livro se compara comigo.
R: Como assim? Poderia
explicar isso um pouco melhor?
Bíblia: Com certeza. Você sabe que “não há
limite para fazer livros” (Ec 12.12). A cada ano são publicados, em todo o
mundo, mais de dois milhões de livros. Só metade dos livros impressos é
vendida, e só a metade disso é de fato lida. E, depois que alguém leu um livro,
dificilmente lê uma segunda vez. Eu sou lida e relida o tempo todo. Ou você
acha que, além de mim, existe outro livro que é lido tantas vezes por semana,
em tantos lugares diferentes, por tantas pessoas?
R: Será que essas
leituras e releituras têm a ver com o fato de as pessoas acharem que você fala a
respeito de tudo e tem resposta para tudo?
Bíblia: Muita gente pensa assim. Mas acho
que, em geral, é gente que nunca me leu. Eu falo sobre um bocado de coisas.
Conto histórias tristes e histórias alegres. Falo de guerras e trago uma grande
mensagem de paz. Tenho lamentações e também cânticos alegres. Trago reflexões
filosóficas e sabedoria prática. Ensino provérbios e transmito ensinamentos na
forma de cartas. Mas o meu personagem principal é Deus: quem ele é e o que ele
faz. A sabedoria que eu trago é sabedoria para a salvação pela fé em Jesus Cristo
(2Tm 3.15). Assim, eu respondo às perguntas mais importantes da vida e a respeito
da vida. Mas não tenho resposta para todas as perguntas. E sou franca e honesta
quanto a isso, pois levo as pessoas a confessar que “o nosso conhecimento é
incompleto” (1Co 13.9). O conhecimento completo ainda está por vir. Mas naquele
dia, o dia de Cristo (Fp 1.10), eu talvez nem seja mais lembrada, porque cumpri
o meu papel.
R: Você mencionou
reflexões filosóficas, cânticos, histórias, provérbios, cartas. De tudo isso, o
que mais se destaca?
Bíblia: Para quem não me conhece ou me conhece
pouco, posso dizer que sou principalmente um livro de história. São muitas
histórias, chamadas de “histórias bíblicas”. Mas, na verdade, é apenas uma
história. Uma grande história: a história de Deus e sua criatura mais
importante, o ser humano. Eu conto a história do que Deus fez e ainda faz para
trazer a humanidade de volta para si, por meio de um povo que Deus escolheu,
chamado Israel. Desse povo nasceu o Salvador. Agora que a salvação precisa ser
anunciada ao mundo, existe um novo Israel, a igreja (Fp 3.3).
R: Interessante
isso. Acho que muita gente pensa que você é um livro cheio de leis, no estilo
da constituição de um país ou dos estatutos de uma sociedade. O que você tem a
dizer sobre isso?
Bíblia: Não posso negar que tenho leis. Na
verdade, eu trago a lei de Deus para as pessoas. O resumo dela está nos
Dez Mandamentos. Mas eu trago também a boa notícia daquilo que Jesus Cristo fez
e ainda faz, por meio do Espírito Santo. Esse evangelho é a palavra final de
Deus para a humanidade. Assim, eu tenho duas palavras: lei e evangelho. A lei é
o que Deus exige do ser humano; o evangelho é o que ele faz e dá ao ser humano.
Dentro de mim, é possível e até necessário fazer distinção entre lei (o que
Deus exige) e evangelho (o que Deus dá).
R: Isto soa
estranho. Acho que as pessoas estão mais acostumadas com outra divisão: entre
Antigo Testamento e Novo Testamento. Que história de “testamento” é essa?
Bíblia: Testamento é outro nome para aliança
ou acordo. A história de Deus com o seu povo escolhido, Israel, se baseou um
acordo, numa aliança. Como essa aliança não foi negociada de parte a parte, mas
entregue por Deus na forma de uma promessa, ela foi chamada de “testamento”. (Você
sabe que um testamento não envolve negociação e sempre existe aquela
expectativa: o que será que fulano colocou no testamento?). Ao enviar o seu
Filho ao mundo, Deus fez uma nova aliança ou um novo testamento. Não totalmente
diferente do primeiro, mas ao mesmo tempo “novo”. Ele é novo também porque
cumpre a primeira aliança. Quando surgiu o “novo testamento”, o testamento
anterior automaticamente passou a ser “antigo” (Hb 8.13).
R: Por favor, não
se ofenda nem me leve a mal, mas vejo que você é bem rechonchuda, formando um livro
bem grosso. Como se explica isso?
Bíblia: Sou assim “gordinha” porque, mesmo
estando entre duas capas apenas, sou uma coleção de 66 livros. Mais do que
livro, sou biblioteca. Assim, se você acha que vai ser complicado lidar comigo
porque tenho umas 1.500 páginas, pense em mim como um conjunto de 66 livros.
Não pense em “ler a Bíblia”; pense em ler os livros da Bíblia. Um de cada vez.
E comece pelo meu final. Comece pelo Novo Testamento. Leia trechos mais longos
e não apenas pedacinhos.
R: Esses
pedacinhos de que você fala são os versículos? E tem também os capítulos. Acho
que você é o único livro que tem capítulos e versículos...
Bíblia: De fato, livros em geral têm
capítulos, podendo também ter partes (que reúnem vários capítulos). E, em geral,
livros têm parágrafos. Eu também tenho parágrafos, mas muita gente nem nota isso
ou não leva isso a sério. Mas não vou entrar nessa discussão agora. Prefiro
dizer que não nasci com essa divisão de capítulos e versículos. Não nasci do
jeito que apareço hoje, cheia de números. É verdade, eu tenho algumas seções
menores que já têm a cara de um capítulo. Os salmos, por exemplo. Cada salmo é
um capítulo. Mas a maior parte da divisão em capítulos e a inclusão dos números
dos capítulos, ah, isso só foi “colado” em cima de mim uns setecentos anos
atrás (por volta de 1300 d. C.). Assim, eles me dividiram em 1.189 capítulos! Além
disso, eu também nasci com algumas divisões menores, uma espécie de começo do
sistema de versículos. Os provérbios (do livro de Provérbios) são versículos.
Nos salmos acontece algo semelhante. Depois, as pessoas me picotaram toda e me
encheram de números, criando um total de 31.105 versículos. Isso foi feito uns
quinhentos anos atrás (por volta de 1580 d. C.). Meu “campeão” em número de
versículos é o Salmo 119, que tem 176 versículos. Hoje, estou toda enfeitada ou
cheia de números, que eu não tinha no começo. Mas eu não me queixo. Afinal,
esse é um jeito fácil que as pessoas têm de se achar dentro de mim. Quem
conhece “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra”, geralmente sabe que esse é
um pequeno trecho bíblico. Se alguém diz: “Está nos salmos”, já fica mais fácil
de achar. Se acrescentar: “Salmo 119”, fica mais fácil ainda. Se completar com
“versículo 105”, não tem como não achar!
R: Para concluir, quero voltar ao que
você já disse de passagem: “comece a ler pelo meu final”. Quem lê um livro de
trás para frente?
Bíblia: Ah, isso é mais
uma forma de falar, mas é muito importante. Não significa começar a leitura com
o Apocalipse e terminar com o Gênesis, embora isso também seja possível. Significa
que a melhor maneira de lidar comigo é começar pelo Novo Testamento, onde a luz
de Cristo brilha com muita clareza. Com essa luz, é mais fácil entrar no Antigo
Testamento (Lc 24.27). Eu sou “o livro de Cristo”, e nada se compara com a
“sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus” (Fp 3.8). Ao ler outros livros, você
pode resistir à tentação de pular para as últimas páginas, para ver como a
história termina. Mas comigo, Bíblia, é diferente: é preciso pular logo para o
final, conhecer de saída o ponto alto da história, o evangelho de Cristo, no
Novo Testamento.