Uma conversa imaginária, mas séria, com a Bíblia


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01/06/2020 #Artigos #Editora Concórdia

Nos 72 anos da SBB, uma entrevista com a Bíblia

Uma conversa imaginária, mas séria, com a Bíblia

        No mês em que a Sociedade Bíblica do Brasil completa 72 anos (foi fundada no dia 10 de julho de 1948, no Rio de Janeiro), seria possível falar sobre a Sociedade Bíblica e sua importante missão no Brasil e no mundo. No entanto, escolhi um caminho um pouco diferente, para falar da Bíblia, que é a razão de existir da Sociedade Bíblica. Seria possível apresentar as informações de forma direta, mas, numa tentativa de deixar isso um pouco mais interessante, optei por uma entrevista imaginária com a Bíblia. (Afinal, há vários momentos, dentro da Bíblia, em que se afirma que “a Escritura diz”, isto é, fala.) A entrevista é imaginária, mas as respostas são sérias e as informações condizem com a verdade.

            Repórter (R): E então, Bíblia, setenta e dois anos de história no Brasil? Como se sente?

            Bíblia: Na verdade, quem está chegando na “idade bíblica” (70 ou 80 anos, como diz o Salmo 90) é a Sociedade Bíblica do Brasil. Eu estou no Brasil, em língua portuguesa, há muito mais tempo. Pelo menos desde os idos de 1809. Antes da Sociedade Bíblica do Brasil, quem me tornou conhecida no Brasil foram as Sociedades Bíblicas da Inglaterra e dos Estados Unidos. Em 1948, com a fundação da Sociedade Bíblica do Brasil, fui entregue ao cuidado direto de líderes das igrejas do Brasil.

            R: Significa que você está em língua portuguesa desde 1809?

            Bíblia: Não, também não é bem assim. Estou em língua portuguesa faz uns 339 anos. Em 1681, o pastor João Ferreira Annes de Almeida publicou a tradução de uma primeira parte, a saber, o Novo Testamento. Almeida vivia bem longe do Brasil e também de Portugal, num pequeno lugar chamado Batávia, na ilha de Java, que hoje faz parte da Indonésia. Como eu sou um livro grande, ele não conseguiu terminar a tradução da segunda parte (o Antigo Testamento). Faleceu antes disso, em 1691. Um colega de Almeida, Jacobus op den Akker, traduziu a parte que vai do final de Ezequiel a Malaquias. E eu apareci numa edição completa, em português, lá por 1750.

            R: E desde quando você tem esse nome de “Bíblia”? É verdade que o seu nome significa “livro de Deus”?

            Bíblia: Hoje, meu nome completo é “Bíblia Sagrada”. Em português, sou chamada assim desde que apareci como livro de um só volume, em 1819. Mas esse nome de “Bíblia” é como um apelido que os outros me deram. Eu mesmo não me chamo de Bíblia, mas não vejo problema no fato de me chamarem assim. Eu gosto de me chamar de “Escritura”, “Sagradas Escrituras”, “Palavra”. E a primeira parte, também conhecida como Antigo Testamento, pode ser chamada de “Lei, Profetas e Salmos”. Como não sou um livro só, mas um conjunto de livros, aos poucos os cristãos começaram a me chamar de “Bíblia”, que é uma palavra que significa “livros”. Sou, sim, o livro de Deus, mas Bíblia significa “livros”, e não livro.

            R: Isso significa que só você tem esse nome...

            Bíblia: Na verdade, não é bem assim. Você sabe que, quando alguém fica famoso, o nome começa a ser copiado. Assim, o nome “bíblia” é dado também a livros que as pessoas pensam que têm autoridade num assunto e que são consultados com frequência. Existe, por exemplo, uma “Bíblia do Vendedor”.

            R: Isso não deixa você aborrecida?

Bíblia: Eu poderia até ficar chateada com isso, mas fazer o quê? E, quando as pessoas citam essas outras “bíblias”, cedo ou tarde alguém se lembra de mim, a Bíblia Sagrada. Eu sou o livro com verdadeira autoridade. E, quando o assunto é consultar com frequência, nenhum outro livro se compara comigo.

            R: Como assim? Poderia explicar isso um pouco melhor?

            Bíblia: Com certeza. Você sabe que “não há limite para fazer livros” (Ec 12.12). A cada ano são publicados, em todo o mundo, mais de dois milhões de livros. Só metade dos livros impressos é vendida, e só a metade disso é de fato lida. E, depois que alguém leu um livro, dificilmente lê uma segunda vez. Eu sou lida e relida o tempo todo. Ou você acha que, além de mim, existe outro livro que é lido tantas vezes por semana, em tantos lugares diferentes, por tantas pessoas?

            R: Será que essas leituras e releituras têm a ver com o fato de as pessoas acharem que você fala a respeito de tudo e tem resposta para tudo?

            Bíblia: Muita gente pensa assim. Mas acho que, em geral, é gente que nunca me leu. Eu falo sobre um bocado de coisas. Conto histórias tristes e histórias alegres. Falo de guerras e trago uma grande mensagem de paz. Tenho lamentações e também cânticos alegres. Trago reflexões filosóficas e sabedoria prática. Ensino provérbios e transmito ensinamentos na forma de cartas. Mas o meu personagem principal é Deus: quem ele é e o que ele faz. A sabedoria que eu trago é sabedoria para a salvação pela fé em Jesus Cristo (2Tm 3.15). Assim, eu respondo às perguntas mais importantes da vida e a respeito da vida. Mas não tenho resposta para todas as perguntas. E sou franca e honesta quanto a isso, pois levo as pessoas a confessar que “o nosso conhecimento é incompleto” (1Co 13.9). O conhecimento completo ainda está por vir. Mas naquele dia, o dia de Cristo (Fp 1.10), eu talvez nem seja mais lembrada, porque cumpri o meu papel.

            R: Você mencionou reflexões filosóficas, cânticos, histórias, provérbios, cartas. De tudo isso, o que mais se destaca?

            Bíblia: Para quem não me conhece ou me conhece pouco, posso dizer que sou principalmente um livro de história. São muitas histórias, chamadas de “histórias bíblicas”. Mas, na verdade, é apenas uma história. Uma grande história: a história de Deus e sua criatura mais importante, o ser humano. Eu conto a história do que Deus fez e ainda faz para trazer a humanidade de volta para si, por meio de um povo que Deus escolheu, chamado Israel. Desse povo nasceu o Salvador. Agora que a salvação precisa ser anunciada ao mundo, existe um novo Israel, a igreja (Fp 3.3).

            R: Interessante isso. Acho que muita gente pensa que você é um livro cheio de leis, no estilo da constituição de um país ou dos estatutos de uma sociedade. O que você tem a dizer sobre isso?

            Bíblia: Não posso negar que tenho leis. Na verdade, eu trago a lei de Deus para as pessoas. O resumo dela está nos Dez Mandamentos. Mas eu trago também a boa notícia daquilo que Jesus Cristo fez e ainda faz, por meio do Espírito Santo. Esse evangelho é a palavra final de Deus para a humanidade. Assim, eu tenho duas palavras: lei e evangelho. A lei é o que Deus exige do ser humano; o evangelho é o que ele faz e dá ao ser humano. Dentro de mim, é possível e até necessário fazer distinção entre lei (o que Deus exige) e evangelho (o que Deus dá).

            R: Isto soa estranho. Acho que as pessoas estão mais acostumadas com outra divisão: entre Antigo Testamento e Novo Testamento. Que história de “testamento” é essa?

            Bíblia: Testamento é outro nome para aliança ou acordo. A história de Deus com o seu povo escolhido, Israel, se baseou um acordo, numa aliança. Como essa aliança não foi negociada de parte a parte, mas entregue por Deus na forma de uma promessa, ela foi chamada de “testamento”. (Você sabe que um testamento não envolve negociação e sempre existe aquela expectativa: o que será que fulano colocou no testamento?). Ao enviar o seu Filho ao mundo, Deus fez uma nova aliança ou um novo testamento. Não totalmente diferente do primeiro, mas ao mesmo tempo “novo”. Ele é novo também porque cumpre a primeira aliança. Quando surgiu o “novo testamento”, o testamento anterior automaticamente passou a ser “antigo” (Hb 8.13). 

            R: Por favor, não se ofenda nem me leve a mal, mas vejo que você é bem rechonchuda, formando um livro bem grosso. Como se explica isso?

            Bíblia: Sou assim “gordinha” porque, mesmo estando entre duas capas apenas, sou uma coleção de 66 livros. Mais do que livro, sou biblioteca. Assim, se você acha que vai ser complicado lidar comigo porque tenho umas 1.500 páginas, pense em mim como um conjunto de 66 livros. Não pense em “ler a Bíblia”; pense em ler os livros da Bíblia. Um de cada vez. E comece pelo meu final. Comece pelo Novo Testamento. Leia trechos mais longos e não apenas pedacinhos.

            R: Esses pedacinhos de que você fala são os versículos? E tem também os capítulos. Acho que você é o único livro que tem capítulos e versículos...

            Bíblia: De fato, livros em geral têm capítulos, podendo também ter partes (que reúnem vários capítulos). E, em geral, livros têm parágrafos. Eu também tenho parágrafos, mas muita gente nem nota isso ou não leva isso a sério. Mas não vou entrar nessa discussão agora. Prefiro dizer que não nasci com essa divisão de capítulos e versículos. Não nasci do jeito que apareço hoje, cheia de números. É verdade, eu tenho algumas seções menores que já têm a cara de um capítulo. Os salmos, por exemplo. Cada salmo é um capítulo. Mas a maior parte da divisão em capítulos e a inclusão dos números dos capítulos, ah, isso só foi “colado” em cima de mim uns setecentos anos atrás (por volta de 1300 d. C.). Assim, eles me dividiram em 1.189 capítulos! Além disso, eu também nasci com algumas divisões menores, uma espécie de começo do sistema de versículos. Os provérbios (do livro de Provérbios) são versículos. Nos salmos acontece algo semelhante. Depois, as pessoas me picotaram toda e me encheram de números, criando um total de 31.105 versículos. Isso foi feito uns quinhentos anos atrás (por volta de 1580 d. C.). Meu “campeão” em número de versículos é o Salmo 119, que tem 176 versículos. Hoje, estou toda enfeitada ou cheia de números, que eu não tinha no começo. Mas eu não me queixo. Afinal, esse é um jeito fácil que as pessoas têm de se achar dentro de mim. Quem conhece “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra”, geralmente sabe que esse é um pequeno trecho bíblico. Se alguém diz: “Está nos salmos”, já fica mais fácil de achar. Se acrescentar: “Salmo 119”, fica mais fácil ainda. Se completar com “versículo 105”, não tem como não achar!

R: Para concluir, quero voltar ao que você já disse de passagem: “comece a ler pelo meu final”. Quem lê um livro de trás para frente?

Bíblia: Ah, isso é mais uma forma de falar, mas é muito importante. Não significa começar a leitura com o Apocalipse e terminar com o Gênesis, embora isso também seja possível. Significa que a melhor maneira de lidar comigo é começar pelo Novo Testamento, onde a luz de Cristo brilha com muita clareza. Com essa luz, é mais fácil entrar no Antigo Testamento (Lc 24.27). Eu sou “o livro de Cristo”, e nada se compara com a “sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus” (Fp 3.8). Ao ler outros livros, você pode resistir à tentação de pular para as últimas páginas, para ver como a história termina. Mas comigo, Bíblia, é diferente: é preciso pular logo para o final, conhecer de saída o ponto alto da história, o evangelho de Cristo, no Novo Testamento. 

Vilson Scholz

Professor de Teologia no Seminário Concórdia vscholz@uol.com.br

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