Aniversário da Reforma


30/10/2019 #Artigos #Editora Concórdia

Com apalavra, Martinho Lutero [1]

Aniversário da Reforma

Apesar de sua agenda sempre tomada, dr. Lutero se dispôs a nos conceder uma rápida entrevista. Reconhecido amplamente como teólogo, professor, pregador, escritor, tradutor da Bíblia e reformador, sua vida e obra ocupam o centro das atenções em todo o mundo em 2017, com a celebração dos 500 anos da Reforma. No dia 31 de outubro, há meio milênio, vieram a público suas famosas 95 teses contra o comércio das cartas de indulgência autorizado pela Igreja. Para ele, o genuíno arrependimento diário e o discipulado coerente com o Evangelho jamais poderiam ser substituídos por compensações financeiras. Tamanho foi o impacto de sua denúncia profética que o 31 de outubro ficou consagrado como o Dia da Reforma.

Lutero deixou claro que está muito preocupado com o teor das celebrações, com o que será promovido e anunciado neste jubileu. Condicionou a publicação de sua entrevista a que divulgássemos expressamente a sua ressalva em relação a si mesmo, sua vida e suas ideias. Ele não quer que valorizemos em demasia suas palavras, já que não traz receitas prontas para os nossos problemas e desafios: “Queria que todos os meus livros fossem sepultados e esquecidos para sempre, para dar lugar a outros melhores”. Disse que foi alguém do seu tempo e para o seu tempo. Nós, de nossa parte – insistiu Lutero –, deveríamos olhar com atenção para a nossa época e lugar, muito diferentes de quando e onde ele viveu, há cinco séculos, na Europa. Nós, pessoas cristãs do século XXI, não podemos transferir a responsabilidade de viver conforme o Evangelho, de falar e agir na perspectiva do reino de Deus. E arrematou: “Aproveitem a Palavra de Deus e sua graça enquanto estão aí, pois elas são como chuva de verão, que não retorna ao lugar por onde passou”.

 

Pergunta Dr. Lutero, por que as 95 teses?

Lutero Ao dizer: “Fazei penitência”, em Mateus 4.17, nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse de arrependimento. Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras de amor. Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências. Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor. Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus. Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com indulgências. O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.

 

P – De que modo isso se relaciona com o que chamamos de Reforma?

L Para mim a Reforma tem a ver principalmente com as palavras “justiça de Deus”. Eu tratei de estudá-las com empenho na Carta aos Romanos. Odiava essa expressão porque todos os professores me tinham ensinado que era a justiça com a qual Deus é justo e castiga os pecadores e injustos. A esse Deus, justo e que pune, eu não amava. Ao contrário, eu o odiava. Mesmo quando era monge e vivia de modo exemplar, continuava me sentindo pecador. Era torturado por minha consciência.

 
P Que tem a carta de Paulo aos Romanos a ver com essa história?

L Pois é, sempre de novo eu acabava batendo naquela passagem do capítulo 1: “A justiça de Deus é nele revelada, como está escrito: o justo vive por fé”. Não entendia a relação entre as palavras. O que Paulo queria dizer? Sem descobrir, eu ficava confuso e furioso. Aí Deus teve pena de mim. Finalmente entendi que a justiça ali expressa é aquela justiça que vivemos pela dádiva de Deus, a fé. A justiça de Deus é revelada por meio do Evangelho, é a justiça que Deus faz, cria em nós pela fé. Exatamente como está escrito: “O justo vive por fé”.

 
P Quais foram as consequências disso?

L Sabem, foi como se eu tivesse renascido. Foi como passar pelas portas do paraíso. A Escritura, lida nessa perspectiva, ficou totalmente diferente. A frase “justiça de Deus”, antes odiada, passou a ser para mim a mais amada de todas. Quanto ao resto, bem, vocês conhecem a história: indulgências, briga com Roma e com o imperador, introdução da Reforma em comunidades e escolas, tradução da Bíblia, liturgia e hinos, catecismo… Todo o resto foi decorrência dessa descoberta e do compromisso posto por Deus para quem a vivenciou.

 

P Você dá um belo testemunho! Que experiência maravilhosa, nascer de novo! Mas foi muito difícil convencê-lo a dar esta entrevista. Você diz que podemos transformar os 500 anos da Reforma, em 2017, em uma espécie de culto à personalidade. Como assim?

L Peço omitir meu nome. Não se chamem de “luteranos”, mas de cristãos. Quem é Lutero? A doutrina não é minha. Tampouco fui crucificado em favor de alguém. Seria muita pretensão de minha parte, eu que sou um saco de vermes miserável e fedorento, se quisesse que os filhos de Cristo fossem chamados pelo meu nome desastrado. Vamos extirpar as siglas partidárias e nos chamar de cristãos, de quem temos a doutrina.

 

P Percebemos o quanto o estudo da Escritura ajudou você. Que sugere para quem lê a Bíblia?

L Fundamental é procurar as partes que apresentam Cristo e ensinam tudo o que é necessário e bom saber sobre ele. Os evangelhos e a primeira carta de João, as cartas de Paulo – em especial Romanos, Gálatas e Efésios – e a primeira carta de Pedro são o cerne e a medula entre todos os livros. Cada pessoa cristã deveria lê-los por primeiro e com maior frequência. Ali achará enfatizado de forma magistral como a fé em Cristo supera pecado, morte e inferno e dá vida, justiça e salvação. Ali achará o Evangelho propriamente dito.

 

P Muitos pregadores, hoje, usam a Bíblia para oprimir e manipular as pessoas, especialmente quando esta aborda pecado, diabo e demônios. Com isso, dominam as pessoas e ficam com seu dinheiro e bens. Você, que com frequência também escreveu sobre pecado, diabo e demônios, concorda com eles?

L De forma alguma. Ainda que o mundo estivesse cheio de demônios que nos quisessem devorar, não nos apavoremos demais, pois venceremos apesar de tudo. O príncipe deste mundo, por mais raivoso que se apresente, nada nos fará, porque já está julgado, uma palavrinha pode derrubá-lo. A Palavra, eles têm de deixar de pé, mesmo que não o queiram. Deus está agindo entre nós com seu Espírito e dons. Se nos tirarem o corpo, bens, honra, filhos e esposa, que tudo se vá! Mesmo assim, o Reino há de ser nosso.

 

P Até agora você falou quase que exclusivamente sobre aquilo que Deus faz. E nós, Dr. Lutero? Nós, pessoas cristãs, que fazemos nós?

L Pessoas cristãs autênticas são as que trazem a vida e o nome de Cristo para dentro de sua vida. A pessoa cristã não vive em si mesma, mas em Cristo e em seu próximo, ou então não é vida cristã. Vive em Cristo, pela fé; no próximo, pelo amor. Pela fé a pessoa cristã é levada para o alto, acima de si mesma, em Deus. Por outro lado, pelo amor, desce abaixo de si, até o próximo, assim mesmo permanecendo sempre em Deus e seu amor. Uma pessoa cristã é senhora absoluta sobre tudo e a ninguém está sujeita. Ao mesmo tempo, no entanto, serve a tudo e a todos, estando sujeita a todos.

 

P Você tem insistido na doutrina da salvação por graça e fé. Tem afirmado que não há nada que possamos fazer para merecer a salvação. Na sua opinião, os cristãos têm também alguma responsabilidade social?

L Cristo nos ensina para quem devemos fazer obras, mostrando-nos quais são boas obras. Todas as outras obras, com exceção da fé, devemos fazê-las para o próximo. Pois Deus não exige de nós que lhe façamos uma obra, a não ser unicamente a fé, por meio de Cristo. Com a fé, Deus tem o suficiente. Com ela o honramos como aquele que é benévolo, misericordioso, sábio, bom e verdadeiro. Depois disso, cuida apenas para proceder com o próximo como Cristo procedeu contigo, e deixa todas as tuas obras com toda a tua vida visar ao teu próximo. O teu próximo é aquele que necessita de ti em assuntos de corpo e de alma.

 

P No Brasil, vivemos nos últimos anos um contexto de convulsão política e social. É legítimo que os cristãos assumam cargos e participem ativamente da política?

L Devemos saber que, desde o início do mundo, um governante sábio é ave rara, e mais raro ainda um governante honesto. Mas a política é um campo de serviço à coletividade, e nenhum cristão deve assumir cargo político para defender interesses pessoais. Em favor de outros, porém, pode e deve assumir para impedir a maldade e proteger a honestidade.

 

P Por que você tem insistido tanto na necessidade de criar e manter escolas?

LNa verdade é pecado e vergonha o fato de termos chegado a ponto de haver necessidade de estimular e de sermos estimulados a educar nossos filhos e nossas filhas e a juventude e de buscar o melhor para eles. Aliás, em minha opinião, nenhum pecado exterior pesa tanto sobre o mundo perante Deus e nenhum merece maior castigo do que justamente o pecado que cometemos contra as crianças, quando não as educamos.

 

P O senhor acredita que a sociedade terá algum proveito se investir em educação?

L Eu penso que o progresso de uma cidade não depende apenas do acúmulo de grande tesouros, da construção de muros de fortificação, de casas bonitas, de muitos canhões e da fabricação de muitas armaduras. Inclusive, onde existem muitas coisas dessa espécie e aparecem alguns tolos enlouquecidos, o prejuízo é tanto pior e maior para a referida cidade. Muito antes, o melhor e mais rico progresso para uma cidade é quando possui muitas pessoas bem instruídas, muitos cidadãos ajuizados, honestos e bem-educados. Esses então também podem acumular, preservar e usar corretamente riquezas e todo tipo de bens.

 

P Você também tem alguma opinião sobre justiça e injustiça nas relações econômicas da sociedade?

LA maior desgraça é, com certeza, o empréstimo a juros. Nesse ponto também se deveriam realmente pôr rédeas aos grandes banqueiros. Como é possível que durante a vida de uma única pessoa se juntem fortunas tão imensas de modo lícito? Eu não conheço a conta. Mas não compreendo como se pode, com 100 reais, ganhar outros tantos por ano, e tudo isso proveniente não do trabalho?

 

P Você é citado como alguém que valorizou o trabalho como uma verdadeira vocação. Poderia explicar isso um pouco melhor?

LVeja bem, um sapateiro, um ferreiro, um lavrador, cada um tem o ofício e a ocupação próprios de seu trabalho. Mesmo assim todos são sacerdotes e bispos ordenados de igual modo, e cada qual deve ser útil e prestativo aos outros com seu ofício ou ocupação, de modo que múltiplas ocupações estão voltadas para uma comunidade, para promover corpo e alma, da mesma forma como os membros do corpo servem todos um ao outro.

Para finalizar: a pessoa que é cristã não vive em si mesma, mas em Cristo e no seu próximo – em Cristo, pela fé; e no próximo, pelo amor.

 
Fontes
Da Liberdade Cristã, 48
OS (Obras Selecionadas) 1, 256
OS 2, 284, 337s, 456
OS 5, 305s, 309
OS 6, 95; 103; 481, 7-14
OS 7, 538
Pelo Evangelho de Cristo, 22, 31, 177s

WA [Weimarer Ausgabe – Edição de Weimar] 10 I.2, 168,17-169,10

 
 

Nota: Esse texto em forma de entrevista foi publicado no livro de meditações diárias – Castelo Forte 2017 – da Comissão Interluterana de Literatura (CIL), em parceria com as editoras Concórdia e Sinodal. Nessa edição do Castelo Forte, em comemoração aos 500 anos da Reforma, todos os textos são de Martinho Lutero, selecionados a partir do Castelo Forte de 1983 e das Obras Selecionadas de Lutero, também publicadas pela CIL.



[1]    Texto elaborado pelos professores Osmar L. Witt (IECLB) e Ricardo W. Rieth (IELB) a partir de escritos  selecionados de Martinho Lutero. Agradecemos a eles pela cessão do texto para publicação no Mensageiro Luterano.

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