E não nos deixes cair em tentação!


15/10/2019 #Artigos #Editora Concórdia

Em algum momento, mais para o final do ano de 2017, Francisco, o bispo de Roma,provocou uma polêmica, ao comentar, na TV italiana, que uma frase do Pai-Nosso não teria sido bem traduzida. Trata-se ...

E não nos deixes cair em tentação!

Em algum momento, mais para o final do ano de 2017, Francisco, o bispo de Roma, provocou uma polêmica, ao comentar, na TV italiana, que uma frase do Pai-Nosso não teria sido bem traduzida. Trata-se de Mateus 6.13, aquela parte do Pai-Nosso que diz: “e não nos deixes cair em tentação”. Acontece que a maioria das traduções bíblicas diz algo parecido com o que aparece na Almeida antiga, a assim chamada Revista e Corrigida: “e não nos induzas à tentação”. Lutero fez uma tradução semelhante: und führe uns nicht in Versuchung. As traduções inglesas dizem: And lead us not into temptation. Segundo Francisco, “é Satanás que nos conduz para a tentação; esse departamento é dele”. Assim, o texto teria de ser traduzido por “não deixes que caiamos em tentação”.

É bem possível que essa observação tenha sido influenciada por outro texto, bem conhecido, do Novo Testamento. Trata-se de Tiago 1.13, que dá sustentação a uma parte do que o papa romano afirmou. Ali diz: “Ninguém, ao ser tentado, diga: ‘Sou tentado por Deus’. Porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo não tenta ninguém”.

Em resposta ao comentário de Francisco, biblistas argumentaram, com razão, que ele foi contra a Vulgata, que é a tradução oficial da Igreja Católica Romana. Lá diz mais ou menos o que está na Almeida Revista e Corrigida: et ne inducas nos in temptationem (“e não leves a nós para a tentação”). Cabe notar que na tradução latina foi possível manter a ordem exata das palavras do grego, algo que é impossível em português. Nós temos de antecipar o pronome, dizendo: “e não nos leves para a tentação”. Seja como for, é no mínimo interessante ver o chefe da Igreja Romana fazer um comentário que questiona a tradução da Vulgata.

 
Mas o que temos em mente quando dizemos:
“E não nos deixes cair em tentação?”

Já encontrei várias pessoas que afirmam com muita convicção que o significado é o seguinte: “Quando somos tentados, não nos deixes cair”. Prova de que muitos compreendem o texto desta maneira é o fato de que existe contestação quanto ao que aparece na Nova Tradução na Linguagem de Hoje, a saber, “e não deixes que sejamos tentados”. Este texto da NTLH se aproxima bastante da Almeida Revista e Corrigida, que diz: “e não nos induzas à tentação”. Temos, portanto, dois votos contra um (Almeida Revista e Corrigida + NTLH contra Almeida Revista e Atualizada). Ou será que o significado do texto da Almeida Atualizada (“e não nos deixes cair em tentação”) é o mesmo das outras traduções e muitos apenas fazem uma leitura diferente – forçada – desse texto da Atualizada? Como, afinal, entender essa petição do Pai-Nosso?

Antes de responder, cabe acrescentar que, sendo o Pai-Nosso um texto bem conhecido e até memorizado, não se mexe nele impunemente. O melhor é deixar a tradução do jeito que está. Em inglês, usam uma forma arcaica que é de 400 anos atrás! A Almeida Atualizada, na década de 1950, alterou uma das petições para “faça-se a tua vontade”. No entanto, ninguém adotou esta forma, tanto assim que na Nova Almeida Atualizada (de 2017) reverteu-se para “seja feita a tua vontade”.

Partindo, então, para a resposta, cabe dizer que o texto grego de Mateus 6.13 é claro e que não existe nenhuma variante textual ou texto grego alternativo. Ou seja, o texto grego é um só e diz: “e não nos leves para dentro da tentação”. E é neste sentido que precisamos entender a tradução da Almeida Atualizada. “Não nos deixes cair em tentação” significa “não permitas que sejamos tentados” ou “não nos submetas ao teste”. Não significa “quando tentados, não permite que caiamos”. Gosto de dizer que esta é a oração do discípulo ou cristão realista. Ele sabe que não é imune à tentação e, ao mesmo tempo, conhece as suas debilidades. Não ousa dizer: “Que venha a tentação!” Por não ser um superdiscípulo, pede para ser poupado.

Mas voltemos à questão levantada pelo bispo de Roma. Será que a tradução por algo como “e não nos induzas à tentação” significa que Deus é o tentador? Acho que não é isso que está escrito e não é isso que afirmamos quando oramos o Pai-Nosso. A solução para esse problema está no contexto do Evangelho de Mateus, no começo do capítulo 4, o relato da tentação de Jesus, que é o texto do Evangelho que abre o período da Quaresma. Diz assim: “A seguir, Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo”. Quem levou Jesus ao deserto? O Espírito Santo. Portanto, Deus levou Jesus para ser tentado, Deus submeteu o seu Filho ao teste. Mas quem tentou Jesus? Foi o diabo. Portanto, fica claro, conforme diz Tiago 1.13, que Deus não tenta ninguém, mesmo deixando que sejamos tentados ou que caiamos em tentação. Por isso, o papa Francisco não tem razão ao dizer que é Satanás quem nos conduz para a tentação. Porque a nossa oração se dirige ao Pai, e nela pedimos que ele não nos submeta ao teste.

Por fim, um pequeno comentário sobre o conteúdo da tentação. Nossa tendência é fazer uma leitura moralizante da tentação, pensando que ela, por assim dizer, se restringe a convites no sentido de cometermos o que se poderia chamar de “pequenos delitos”. Sem querer minimizar a realidade desse tipo de tentação, é preciso enfatizar que a tentação de que fala o Pai-Nosso poderia ser caracterizada como “a mãe de todas as tentações”. É a tentação semelhante àquela pela qual Jesus passou, a saber, a tentação de abrir mão de nossa lealdade fundamental, que, em nosso caso, é a fé em Deus. Por isso, ao orarmos “não nos deixes cair em tentação”, estamos dizendo: “Eu creio em ti, Senhor. Não tenho uma fé heroica, capaz de enfrentar todas as turbulências. Por isso, por favor, não me submetas ao teste”. No fundo, estamos pedindo que Deus nos preserve na fé, firmados em Jesus. Uma oração sempre necessária, ainda mais no tempo da Quaresma.

Vilson Scholz

Professor de Teologia no Seminário Concórdia vscholz@uol.com.br

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